A compaixão pode ser ensinada?




No inverno londrino de 1992, meu orientador de pós-doutorado, ainda sem saber bem em que projeto me alocava, me depositou na enfermaria de transplante de médula. Foi um alivio para ele, já que eu era fluente em inglês e tinha uma experiência considerável com pacientes transplantados adquirida no tempo em que trabalhei no Brasil. Um pouco decepcionado, acedi ao pedido dele, mas achava aquilo uma perda de tempo precioso. Queria iniciar logo minha pesquisa.
Ao cabo de algumas semanas, eu percebi que estava vivendo uma das experiências mais ricas que já tinha experimentado em toda a minha vida. Os pacientes eram provenientes dos países mais diversos, que pelos laços coloniais com a Inglaterra e pela excelência daquele centro de transplante especializado em um tipo de leucemia, tornava-se um dos mais cobiçados do mundo para quem tentava encontrar a única esperança de cura para uma doença fatal na época.
Príncipes da Arábia Saudita e Kuwait, diplomatas da Nigéria, empresários russos, generais de Mianmar. Eu migrava de um quarto para outro conversando de igual para igual com pessoas tão importantes em seus países que, se estivessem saudáveis, não se dignariam a notar a minha presença. O câncer torna de fato as pessoas muito parecidas, removendo compulsoriamente muitas das camadas de importância social que elas se atribuem. A farda, a coroa, a conta bancária, os títulos e medalhas ficam do lado de fora da porta. No leito, há uma pessoa vestida apenas com uma bata hospitalar, falando com franqueza sobre a sua infância, sobre como é o seu mundo e o seu deus, como gosta de futebol, como teme por sua família, como teme morrer.
Eu nunca mais consegui experimentar nenhum preconceito inegociável contra qualquer ser humano depois de ver o que eles são quando estão nus e atemorizados. Aprendi nitidamente a me ver na situação deles e a imaginar como eu reagiria, se o que estava acontecendo com eles acontecesse comigo. E aprendi a conquistar a confiança desses pacientes, desenvolvendo a capacidade de ouvir, de mostrar interesse, especialmente porque, diferente dos médicos britânicos, eu tentava obstinadamente dividir com eles sempre o lado mais otimista da situação, uma coisa muito brasileira. Sempre foi intolerável para mim, apesar de compreensível, a ideia de sentar ao lado do paciente e falar quantos meses de vida ele tem e o que pode acontecer de ruim nas próximas semanas ao estilo tipicamente anglo-saxão.

O caso de Elizaveta

Uma situação especial, no entanto, foi o ponto de virada. Após uns dois meses com estes pacientes e me sentindo absolutamente confiante, empoderado com a sinergia que a minha brasilidade me conferia em relação a pacientes de culturas não saxônicas, já com uma pontinha de soberba em relação aos meus colegas britânicos (os pacientes africanos, árabes e latinos preferiam o meu jeito sul americano do que o jeito saxão) enfrentei uma situação completamente inesperada, e que colocou de forma dolorosa minhas expectativas sobre minhas habilidades médicas no lugar de onde nunca deveriam ter saído.
Elizaveta era uma adolescente de uns 16 ou 17 anos, com uma forma rara de leucemia e que havia recebido um transplante de medula óssea do irmão. Alguns dias após o transplante ela desenvolveu uma quantidade enorme de feridas na boca e em parte do tubo digestivo, uma condição conhecida como mucosite, incrivelmente comum em transplantados daquela época. A diferença é que as armas que tínhamos para lutar contra mucosite eram muito primitivas e o caso de Elizaveta era especialmente angustiante.
A dor deveria ser excruciante, porque dias antes eu mantive conversas muito agradáveis com ela, uma pessoa gentil, calma e bastante cooperativa. Agora ela se contorcia e gritava em agonia por horas a fio. A coisa só parava com doses altas de mofina. Naquela manhã, terminado o soro com morfina, ela despertou algumas horas após em tal desespero que arrancou o soro conectado ao cateter dela. Ninguém conseguia acalmá-la muito menos reinstalar o soro com morfina.
Ela estava tão transtornada de dor que sequer parecia me reconhecer ou identificar meus pedidos para que se acalmasse um pouco, de forma que pudéssemos reinstalar o soro com morfina. A enfermaria em tumulto, os outros pacientes e familiares assustados com a intensidade e ferocidade dos gritos, médicos jovens e enfermeiras experientes completamente estressados, cogitando em imobilizá-la à força para tentar recolocar a medicação. Situação fora de controle. Eu me sentia desesperado e humilhado por não conseguir ajudá-la de nenhuma maneira.
Foi quando apareceu miss Daisy.

A chegada de Miss Daisy

Miss Daisy era uma enfermeira jamaicana que só seria notável pelo seu tamanho descomunal e por uma voz excepcionalmente doce. Os médicos jovens gostavam dela porque era paciente para explicar os procedimentos mais básicos: em que formulários pedir exames, como preencher o prontuário, etc. Bem, Miss Daisy entrou no quarto, pisando firme, para nossa surpresa. Abriram-se as fileiras, todos olhando, admirados e aliviados, pelo menos chegou alguém que parece saber o que fazer.
Ela sentou-se pesadamente ao lado de Elizaveta e apertou as mãos da menina contra as suas. O termo mais preciso seria que as mãos da paciente desapareceram nas mãos enormes de Miss Daisy. A menina levou um susto, parou de gritar e olhou em silêncio por algum tempo para aquela figura de porte mitológico. Olhou para as mãos e depois para os olhos. Foram alguns segundos sem nenhum movimento de lado a lado.
Miss Daisy então retirou uma das mãos da concha de proteção que havia acolhida às da menina e acariciou gentilmente a cabeça desta, falando algo muito baixo, como se contasse uma história, mas que só Elizaveta conseguia ouvir. Esta, estava hipnotizada e seu corpo relaxou como se algum analgésico mágico tivesse sido administrado. Miss Daisy conversou com ela por cerca de dois minutos, levantou-se e calmamente reconectou o soro com morfina. Elizaveta, sem mais nenhuma queixa, dormiu logo em seguida.
Miss Daisy caminhou desajeitadamente de volta para o posto de enfermagem e trocou um olhar comigo de passagem. Ela deve ter visto um rapaz de olhos esbugalhados de espanto como quem fosse testemunha de um milagre. Eu vi o olhar mais doce do mundo e uma expressão de serenidade que nunca mais pude esquecer. Na época não conseguia traduzir o que havia passado em palavras. Hoje, tantos anos depois, entendi o que Miss Daisy transmitiu para Elisaveta. Compaixão. Algo como, “Você não está só, eu estou aqui a seu lado, completamente”.

Compaixão evolutiva

Termos como compaixão, empatia, alteridade, se confundem, mas em geral significam algo próximo a compreender o sofrimento de outras pessoas. Estamos fechados no nosso mundo (umwelt) e não há como ser diferente, já que o nosso fluxo de consciência não pode ser compartilhado por ninguém mais. Portanto, a percepção do mundo à nossa volta é única. Isso nos torna criaturas extremamente solitárias. Basta um passo lógico adiante para entendermos imediatamente que todas as outras pessoas à nossa volta, no nosso ambiente (umgebung) também sofrem este mesmo destino. Flashes de percepção da dor ou das necessidades alheias, sem nenhum fim utilitário imediato, acontecem com frequência, no entanto.
Quem nunca se emocionou ao ver uma propagando dos médicos sem fronteiras, ou um documentário sobre campos de concentração ou refugiados sírios? E esta característica preservada no nosso processo de evolução deve ter sido uma das razões da nossa sobrevivência como espécie.
Um amigo me contou há algum tempo sobre uma experiência em um safári noturno, em que o guia apagou todas as luzes do veículo em que viajavam para que eles sentissem como deveria ter sido o mundo dos nossos ancestrais há 70 ou 80 mil anos. Ouviam-se ruídos ameaçadores, luzes que piscavam na savana que poderiam ser olhos de predadores, enfim, um sentimento de desamparo e terror completo.
Um primata sem pelos, sem garras, com olfato e visão limitadas, pouco ágil e lento como a nossa espécie não teria a menor chance de sobreviver sozinho por algumas horas naquela escuridão. A capacidade de romper o umwelt e compartilhar algumas arestas do umgebung deve ter surgido em algum ponto da evolução dos primatas; talvez tenha acompanhado o próprio surgimento da ordem dos primatas há dezenas de milhões de anos. Esta é uma ideia central no pensamento de Steven Pinker, um dos maiores cientistas da evolução do século XX.
Foi a capacidade de compreensão de que o outro individuo do meu grupo deve sentir as interações com a natureza do mesmo jeito que eu sinto que permitiu a criação de grupos onde tarefas são compartilhadas com mais eficiência e onde o aprendizado pode ser transmitido entre gerações. A compaixão é uma ferramenta evolutiva que foi selecionada em resposta à necessidade de comunicação, proteção, reprodução e obtenção de alimentos. Assim, a compaixão existe em todos os membros de nossa e de outras espécies que dependem de cooperação.
Alguns poucos de nós nascem destituídos desta função. Estas pessoas raramente conseguem ir muito longe e são afastadas ou eliminadas por conta do próprio auto interesse do grupo. Outros nascem com capacidades mais ou menos aprimoradas deste sentimento. E, outros, muito raros, possuem compaixão transbordante, um ponto muito fora da curva, como Miss Daisy.

Exercite a compaixão

Eu nunca poderei tocar violino como Itzhak Perlman ou saxofone como Charlie Parker; estes indivíduos são pontos fora da curva. Mas posso aprender a tocar violão e, sem muito esforço, em pouco tempo estarei executando algumas canções que envolvam quatro ou cinco posições simples. E se treinar com dedicação, conseguirei tocar até ao ponto de impressionar meus amigos em uma festa. Qualquer um consegue. Com compaixão, é a mesma coisa.
Para quem trabalha no cuidado de pacientes, o treinamento por professores experientes e o convívio com outros profissionais que lidam com o respeito ao outro como um valor inegociável, torna-se um padrão que se incorpora deliberadamente a algo que já era intuitivamente conhecido. Gentileza, otimismo, paciência para escutar, comportamento pró-ativo em auxiliar, todas estas coisas podem ser aprimoradas por certas técnicas de fácil aprendizagem, mas que exigem disciplina e vigilância constantes para atingirem algo próximo com o que eu vi em Miss Daisy.
Algo próximo. Nunca igual.
Por que fazer igual ao que Miss Daisy fazia, seria como qualquer um achar que seria capaz de tocar violino como Itzhak Perlman ou saxofone como Charles Parker, simplesmente por esforço próprio.

Fonte: Veja