Como ficam vítimas e familiares após reviverem trauma do incêndio

 




Os últimos dez dias foram marcados pelo julgamento dos quatro réus acusados pelo incêndio na Boate Kiss, que aconteceu há 9 anos, na cidade de Santa Maria, do Rio Grande do Sul. Enquanto o Brasil reviu as cenas chocantes da tentativa de resgate dos jovens que estavam na casa noturna, as famílias que perderam seus filhos, foram 242 mortos ao todo, e parte dos mais de 600 sobreviventes tiveram de reviver e remexer em um trauma profundo. 

A psiquiatra Luciana Siqueira, do Programa de Ansiedade do IPq/HC-USP (Instituto de Psiquiatria do Hospital das Clínicas da USP), explica que, mesmo sendo importante e necessário, todo esse processo “tem um preço penoso, que pode desencadear lembranças muito intensas e trazer de voltar a sensação que tudo aquilo está ocorrendo novamente”.

Cerca de 30 familiares estiveram em Porto Alegre para acompanhar pessoalmente o tribunal do júri, que terminou na última sexta-feira (10) com os quatros réus sendo considerados culpados. Segundo o Tribunal de Justiça, a Associação dos Familiares das Vítimas da Tragédia de Santa Maria credenciou 55 pessoas para entrar no Foro Central 1, na capital gaúcha.

A mãe da vítima Rafael Carvalho, Fátima de Oliveira Carvalho ressalta a importância de estar presente no julgamento ao lado de outros familiares. “Reviver é difícil, mas é necessário. Vim pelo meu filho e por todos os outros. Quis estar aqui com as outras mães que estão na mesma situação que eu e acompanhar o sofrimento de quem está na mesma situação que eu”.

A médica observa a importância dessa união nesse momento de reviver o passado. “Tem o sofrimento dentro do grupo pessoal de cada um. Mas tem outras questões importantes no grupo do qual os familiares passaram a fazer parte”, diz. “De certa forma um sabe o que o outro está passando. Frente ao problema comum ter uma união e o apoio do outro é importante”, salienta a psiquiatra.

Além dos familiares, Fátima fez questão de ir de Santo André, na grande São Paulo, para Porto Alegre, no Rio Grande do Sul, também para apoiar as vítimas. “Eu quero estar junto com os sobreviventes que estão aqui. Eles têm traumas psicológicos enormes. O sofrimento dos pais dos sobreviventes que vivem com eles todas as dificuldades”, conta ela.

Situação das vítimas interrogadas

Delvani Rosso reviveu incêndio em interrogatório

Delvani Rosso reviveu incêndio em interrogatório

RENAN MATTOS/FUTURA PRESS - 5.12.2021

Foram ouvidas 28 pessoas, entre testemunhas, vítimas e quatro réus. No caso dos sobreviventes do incêndio, reviver o dia 27 de janeiro de 2013 é ainda mais difícil.

“Fica tudo mais grave porque a situação é revivida ao lado de outras pessoas que também passaram pela mesma situação. Muitas vezes acaba trazendo uma sensação de forte emoção, mobiliza e fica um pouco difícil da pessoa levar adiante o depoimento, mesmo que ela tenha esperado muito por isso”, afirma Luciana Siqueira.

De acordo com a promotora Lucia Helena Callegari, a situação foi agravada pelo modo que algumas defesas interrogaram as vítimas. “Elas foram massacradas por algumas das defesas, essas pessoas já estão fragilizadas e esse massacre não é legal”.

Fátima acrescenta: “acho quase criminoso usar das fragilidades que cada sobrevivente está passando em prol do seu benefício”.

As consequências de reviver o trauma

Cerca de 30 familiares fizeram questão de estar no julgamento

Cerca de 30 familiares fizeram questão de estar no julgamento

RENAN MATTOS/FUTURA PRESS - 5.12.2021

Cada pessoa reage de uma forma diferente ao julgamento. A psiquiatra explica que é comum haver um novo trauma após reviver momentos dolorosos. “Algumas fazem questão de acompanhar o julgamento, mas pode acontecer de a revivência se tornar um novo trauma em cima do que já existia”. 

“Em outros familiares ou vítimas pode desencadear flash back, perturbações do sono, do apetite e da saúde de forma geral, aparecendo os sintomas que chamamos de somáticos, como enxaqueca, dores de cabeça, mal estar gástrico por conto do estresse que estão sendo submetidos”, alerta a médica.

Para Fátima, mãe de Rafael Carvalho, todo o sofrimento vivido nesses dez dias tem uma razão de existir. “Não é fácil estarmos aqui. Estamos pelos nossos filhos, para honrar nossos filhos, eles não podem ter ido em vão. Tem que ter uma resposta para que tenhamos uma sociedade melhor. Nós pensamos que isso não pode se repetir e para isso precisa ter justiça”, desabafa ela.

Como ficam vítimas e familiares após sentença?

Da mesma forma que as reações de reviver um trauma são individuais, Luciana Siqueira ressalta que o resultado de um julgamento também tem consequências diferentes em cada um dos familiares ou vítimas.

“O que imaginamos é que quando a justiça é feita, de alguma forma a pessoa consegue dizer o que aconteceu e ela se sente ouvida, legitimada, pode trazer um senso de justiça e ser um passo de melhora. É uma resolução para que a pessoa consiga ou virar a página ou ter o ‘vida que segue’ vamos dizer assim”, pontua a médica

“Mas para outros não muda nada. A vida é o bem maior e que não vai ser um julgamento que não vai trazer ninguém de volta. É um ritual, é algo que a justiça permite. É algo civilizatório, quando certas coisas acontecem, é necessário apurar se houve o crime, reconhecer e dar devida legitimidade aos fatos”, finaliza a psiquiatra do Hospital das Clínicas de São Paulo.

Fonte:R7