Para médico da UFSCar, 3ª onda da Covid-19 começou em dezembro





O aumento de casos da Covid-19 neste início de ano em todo o país não é novidade para o médico epidemiologista e professor do Departamento de Medicina da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar) Bernardino Geraldo Alves Souto.


Em entrevista ao São Carlos Agora ele relatou que a terceira onda da infecção ocorre desde dezembro e “ninguém viu”. “Não viu porque o Brasil reduziu muito a testagem diagnóstica na população e não contabilizou adequadamente os casos ocorridos em dezembro. O país praticamente abandonou a vigilância epidemiológica da Covid-19, permitindo que a doença avançasse sem que isto fosse percebido logo no início”, denunciou.


Para Bernardino a chegada na variante Ômicron e sua disseminação por todo o país foi apenas uma consequência da flexibilização de todas as atividades e o relaxamento por parte da população.


Ele reconhece que a nova variante não é mais letal que o novo coronavírus original, porém salienta que a transmissibilidade é muito veloz e isso faz com que os casos explodam.


Porém, segundo ele, para controlar a pandemia, além da vacinação em massa, manter os protocolos de saúde, como uso de máscaras, não realizar aglomerações e álcool gel.


Em uma nova entrevista, Bernardino Souto forneceu muitos esclarecimentos sobre o atual momento do Brasil e de São Carlos na pandemia:


A ENTREVISTA


São Carlos Agora - Após a Delta, uma nova variante dá as caras e causa temor àqueles que prezam pela vida. A Ômicron diferencia em que das anteriores?


Bernardino Geraldo Alves Souto - A Ômicron se transmite com mais facilidade e com mais intensidade, embora tenha causado doença menos grave. Ela também tem maior capacidade de escapar dos anticorpos produzidos por infecções anteriores ou pela vacina. Devido a isto, pode causar Covid-19 com maior facilidade mesmo em pessoas que já tiveram a doença ou tomaram corretamente a vacina. A vantagem é que a vacina continua protegendo bem contra o risco de morte, embora proteja pouco contra o risco de transmitir o vírus e contra o risco de ficar doente. O que temos que ter não é temor; é adotar as medidas preventivas adequadas.


SCA - Especialistas dão conta que ela não seria mais letal, porém mais agressiva. Quais os males que ela pode causar no sistema de saúde brasileiro?


Bernardino Souto - Até agora a variante Ômicron tem causado casos menos graves e menos mortais. Não que ela seja mais agressiva: ela é mais transmissível; passa com mais facilidade de uma pessoa para outra. O que ela pode fazer com o sistema de saúde é aumentar a demanda por atendimento por causar um número grande de infecções sintomáticas em curto espaço de tempo. Por outro lado, é preciso compreender que a sobrecarga ou o colapso do sistema de saúde não é causado pelo coronavírus, mas, pela ausência de medidas para o controle da pandemia e a má gestão do sistema de saúde. Se todos usarem sistematicamente máscara adequada de maneira correta, se não fizermos aglomerações, se mantivermos distanciamento físico e se houver testagem diagnóstica recorrente em massa na população com garantia efetiva de isolamento dos casos positivos, os hospitais e postos de saúde não ficarão sobrecarregados porque a epidemia será melhor controlada. Se qualificarmos a gestão e o modelo assistencial do sistema de saúde ele conseguirá ser mais eficiente e suportará melhor a demanda.


SCA - Na Europa e EUA, a vacinação não atinge as cotas consideradas ideais para controle da pandemia. No Brasil, a perspectiva é contraria. A imunização pode ajudar a fazer com que não haja maiores contágios e/ou mortes?


Bernardino Souto - Vários países europeus já têm cobertura vacinal acima de 70% com duas doses; alguns com quase 90% da população vacinada, como é o caso de Portugal. O Brasil, até o dia 05/01/2022 tinha 67,23% e os Estados Unidos 61,8% (https://ourworldindata.org/coronavirus). Quanto mais alta cobertura vacinal for alcançada, melhor. Portanto, devemos perseguir a meta de 100% como ideal. A vacina é excelente para evitar a morte por Covid-19, mas, não evita a transmissão da doença e protege menos contra a ocorrência da doença em sua forma leve, especialmente quando causada pela variante Ômicron. Ou seja, a vacina sozinha não controla a pandemia, embora reduza muito o problema das hospitalizações e mortes por Covid-19. Pessoas vacinadas podem pegar o coronavírus, podem transmiti-lo e podem adoecer, embora a chance de precisar ir para o hospital e de morrer seja bem menor. Neste aspecto, a vacina é indispensável. O que evita a transmissão do vírus e o adoecimento é a máscara, o distanciamento físico, a não aglomeração de pessoas e o isolamento de infectados. Neste caso, estas medidas são também indispensáveis. Portanto, para controlar a pandemia é necessário fazer tudo isto ao mesmo tempo: tomar todas as doses da vacina e adotar as demais medidas para evitar a transmissão do vírus. Se temos hoje algum potencial transmissor que representa risco de Covid para si e para os outros é a pessoa sem máscara e que não respeita o distanciamento físico. Vale lembrar, ainda, que pessoa com máscara com a boca ou o nariz de fora é o mesmo que sem máscara. Além disso, é importante usar máscara de qualidade. O ideal é máscara de TNT em três camadas, N95 sem válvula ou superior.


SCA - No Brasil, de uma forma geral, há claros sinais que a Ômicron faz parte do dia-a-dia. Pode ocorrer uma terceira onda?


Bernardino Souto - A terceira onda já está ocorrendo desde dezembro e ninguém viu. Não viu porque o Brasil reduziu muito a testagem diagnóstica na população e não contabilizou adequadamente os casos ocorridos em dezembro. O país praticamente abandonou a vigilância epidemiológica da Covid-19, permitindo que a doença avançasse sem que isto fosse percebido logo no início. Também negligenciou muito as medidas preventivas, desvalorizou a necessidade de continuar usando máscara e de continuar fazendo distanciamento físico, fizeram-se aglomerações, etc. como se a epidemia tivesse acabado, mesmo com todos os indicadores apontando que ela não havia sido controlada e estava vulnerável a piorar.


SCA - Mais regionalizado, em Araraquara os casos explodiram. Em São Carlos os números começam a assustar. Quais medidas teriam que ser tomadas pelas autoridades que integram o Comitê de Combate ao novo coronavírus?


Bernardino Souto - As que sempre foram preconizadas:


- distribuir máscaras de qualidade à população, ensinar como usar, tornar o uso obrigatório e punir a desobediência;


- criar estratégias para garantir o distanciamento físico mínimo de 2m entre as pessoas em todos os ambientes;


- criar espaços para isolamento e quarentena de pessoas com menor condição de fazer isto em casa;


- testar recorrentemente toda a população e garantir o isolamento dos infectados;


- ampliar a capacidade de vacinação para alcançar alta cobertura com terceira dose;


- adotar medidas restritivas de atividades presenciais com maior potencial de aglomeração de pessoas;


- ações de mobilização social de combate à pandemia;


SCA - Indo novamente a nível nacional, aglomerações acontecem em missas, estádios de futebol, shows. E deve ocorrer em vários municípios desfile de escolas de samba durante o Carnaval. Como o senhor define tais fatos?


Bernardino Souto - Aglomeração humana de qualquer natureza em tempos de Covid-19 é um erro técnico no combate à pandemia que soa irresponsável ou produto da desinformação. Vacina não é passaporte para aglomeração porque não evita a transmissão da doença.


SCA - Dependendo da caminhada desta nova variante na sociedade, acredita que pode ocorrer endurecimento nas flexibilizações? Pode ocorrer fechamento das atividades econômicas?


Bernardino Souto - Temos três opções:


A) - adotar unanimemente o uso correto de máscara adequada, o distanciamento físico, a testagem em massa com isolamento efetivo de infectados e aceleração da cobertura vacinal com terceira dose;


B) - fazer lockdown;


C) - deixar a epidemia adoecendo e matando em ciclos sazonais como vem acontecendo nos últimos dois anos.


A alternativa mais eficiente, ou seja, de melhor custo-benefício é a primeira. Na prática, desde o início vimos a dotando a última que é a pior delas porque cronifica a pandemia, em parte porque é a que mais oferece oportunidade a mutações virais que provocam novas ondas e é a que traz maior custo social e econômico. Também é a mais atrasada em termos técnicos e científicos.


SCA - Em uma opinião bem pessoal, o senhor acredita que as autoridades que cuidam da saúde pública relaxaram nas determinações dos protocolos de segurança? A população, em si, também acreditou que a pandemia teria acabado?


Bernardino Souto - Os técnicos da área de saúde pública no Brasil costumam ser muito bons, mas, não recebem o apoio necessário por parte das autoridades. Falta incentivo, oportunidades para capacitação, condições de trabalho e várias outras coisas. Esses técnicos têm oferecido às autoridades todas as orientações necessárias ao correto combate contra a pandemia, mas, têm sido negligenciados pelas autoridades que culturalmente não priorizam a vida e o bem-estar coletivo, e ainda subordinam as orientações dadas pelos técnicos a outros interesses políticos e econômicos. Nesse sentido, a maior parte das autoridades têm agido com imprudência, negligência e imperícia no combate à pandemia. A população se encontra numa condição vulnerável pela dificuldade social em que se encontra, pela falta de acesso a informações de qualidade e pelo excesso de mentiras propagadas por grande parte das próprias autoridades. Muitas pessoas acharam que a pandemia tinha acabado, outras nunca acreditaram que existe pandemia e outras não tiveram condição socioeconômica e de saúde mental para agirem de outra forma. Este conjunto de coisas é resultante de um Estado que tem sido irresponsável no cuidado de sua gente e não deu nenhuma diretriz clara à população para o combate efetivo contra a pandemia.


SCA - O senhor acredita que ainda teremos muito caminho a percorrer para acabar (ou controlar) a pandemia?




Bernardino Souto - Sim. Tudo o que nunca foi feito precisa começar a ser feito em algum momento para que o saldo final da pandemia não seja semelhante ao de uma guerra que deixa muita gente morta ou sequelada e ainda leva tudo à falência. Portanto, temos muito trabalho pela frente se quisermos que o resultado seja diferente, embora parte do prejuízo não seja mais recuperável.


SCA - Ou o senhor acredita que ela será endêmica e teremos que conviver com esta doença. A máscara facial será um novo (e eterno) acessório?


Bernardino Souto - Os indicadores até agora apontam para uma endemização da pandemia em um formato definido por surtos sazonais. Ou seja, tudo indica que teremos que conviver prolongadamente com a alternância entre quedas e ascensões da curva epidêmica. Penso que a máscara só poderá ser dispensada quando tivermos um medicamento ou vacina que, por si só, controle a pandemia. Se tivermos a sorte de haver uma mutação viral que transforme a Covid-19 em uma doença leve não mortal, pode ser que as coisas voltem a ser como antes.


SCA - A Influenza e a Ômicron têm agido juntas. Quais danos elas podem provocar no organismo? Pode ocorrer um colapso no sistema de saúde?


Bernardino Souto - Tanto a gripe quanto a Covid-19 aumentam a demanda sobre o serviço de saúde. Este somatório em um ambiente negligente às medidas preventivas pode sobrecarregar este sistema para além de sua capacidade. Uma das quatro coisas descritas a seguir pode acontecer com quem adquire o vírus da gripe e o da Covid-19 ao mesmo tempo:


- não ter sintoma nenhum;


- adoecer com sintomas só de gripe;


- adoecer com sintomas só de Covid-19;


- desenvolver sintomas de gripe e de Covid ao mesmo tempo.


Em todo caso, a pessoa pode transmitir os dois vírus e qualquer das duas doenças poderá evoluir de forma grave. Para evitar a forma grave ou a morte, ambas têm vacinas e a gripe tem um medicamento que pode ser usado no início da doença em alguns casos. As medidas preventivas são as mesmas; inclusive a necessidade de isolamento dos infectados.