Há mais de uma década, nas águas sulfurosas de manguezais no Caribe, biólogos encontraram organismos desconhecidos no formato de pequenos filamentos. Somente cinco anos depois eles identificaram que estavam diante de bactérias “gigantes” — na verdade, a maior espécie já descoberta, com quase 1 cm de comprimento e diâmetro 50 vezes maior do que a detentora do recorde anterior.
O tamanho da Thiomargarita magnifica, como foi batizada, é uma entre outras características notáveis, descritas num artigo que acaba de ser publicado na revista Science. A principal delas é o genoma enorme e que não está disperso na célula, como em outras bactérias, mas sim envolto em membranas, algo encontrado somente em células de organismos mais complexos.
Esse fato tem implicações potencialmente transformadoras para o nosso atual entendimento da evolução, já que essa separação nuclear foi essencial no desenvolvimento de organismos pluricelulares, como as plantas e os animais.
Em tempos pandêmicos, é bom esclarecer que ela, como a imensa maioria das bactérias de vida livre conhecidas, não tem potencial para causar doenças aos seres humanos. Mas pode ajudar a entender os intrincados processos da vida e da evolução e aprimorar conhecimentos que podem ser aplicados aos microrganismos que nos preocupam.
Novas organelas
Em uma bactéria típica, as células não possuem uma membrana nuclear que separe o DNA do resto do citoplasma da célula. Mas amostra analisada da T. magnifica apresentou estruturas, batizadas pelos pesquisadores de pepins (pepinas, em tradução livre), que cumprem uma função similar.
“A diferença entre os procariontes, classe de organismos que inclui as bactérias, e os eucariontes, que compõem a maior parte dos seres vivos na Terra, incluindo os humanos, é que as células eucariontes possuem um núcleo com uma membrana que separa o DNA do resto da célula. Essa nova bactéria apresentou essas organelas, uma das quais contém DNA, o que é inédito”, explica o professor João Carlos Setubal, do Departamento de Bioquímica do Instituto de Química da USP, que comentou o trabalho para o Jornal da USP.
As pepinas contêm não apenas DNA, mas também ribossomos, organelas responsáveis pela síntese de proteínas.
Perguntado se essa descoberta pode dizer algo novo sobre o processo ainda não entendido completamente pela ciência de como seres vivos evoluíram de formas simples, como bactérias unicelulares, até seres mais complexos, Setubal responde que sim, mas faz algumas ressalvas.
“Estima-se que os eucariontes surgiram na Terra há bilhões de anos. Essa bactéria nova está viva hoje em dia. Então é óbvio que ela não é o elo perdido entre procariotos e os primeiros eucariotos, mas é possível que ela seja similar estruturalmente a esses seres precursores e, logo, seu estudo pode proporcionar reavaliações que levem a uma compreensão melhor desse processo biológico.”
Bases da biologia
Ele explica que esse tipo de informação dos mecanismos evolutivos básicos que regem como a natureza se comporta é crucial para a compreensão de fenômenos biológicos de diversos âmbitos, que impactam concretamente a vida das pessoas.
“Nada na biologia faz sentido, a não ser sob a luz da evolução”, comenta o pesquisador, citando o geneticista Theodosius Dobzhansky. “É a partir da evolução que podemos acompanhar, por exemplo, como as novas variantes e cepas do coronavírus surgem, conhecimento que é fundamental para o enfrentamento de pandemias.”
O professor ressalta que descobertas como essa mostram como categorias como eucarioto e procarioto são convenções criadas pela humanidade para formular modelos que possibilitem estudar o funcionamento da natureza e, portanto, já que a nossa compreensão da natureza é imperfeita, são passíveis de serem modificadas.
“É através dos conflitos entre a realidade da natureza e as limitações das nossas definições que a ciência avança, pois esses conflitos forçam os cientistas a atualizar as definições para incluírem essas novas complicações e exceções”, comenta ele.
Metabolismo e reprodução
Os organismos que vivem no mangue, onde falta oxigênio, desenvolveram diferentes maneiras de obter energia. O microbiologista Oliver Gros, da Universidade das Antilhas, é um dos autores do artigo e foi quem primeiro encontrou a T. magnifica no mangue caribenho, onde desenvolve pesquisas.
Ele explica que “micróbios em geral degradam a matéria orgânica e produzem altas concentrações de sulfetos [compostos de enxofre]. Mesmo sendo tóxico para grande parte dos animais, esse ambiente rico em sulfetos representa a fonte de energia de uma grande variedade de bactérias, que podem viver em simbiose com invertebrados ou como bactérias de vida livre, formando biofilmes ou esteiras de bactérias compostas por longos filamentos”. Este último é o caso da T. magnifica.
Ela, como outras bactérias gigantes, é poliploide, ou seja, possui diversas cópias do seu genoma. “Mas a T. magnifica possui a maior quantidade de cópias do genoma já vista, cerca de 40 mil, que é um número dez vezes maior que o de outras bactérias gigantes conhecidas”, diz Rosana Ferreira, professora da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), que comentou o trabalho para o Jornal da USP.
A cientista explica que, em geral, as bactérias se dividem igualmente quando se replicam, então uma célula dá origem a duas células filhas iguais. Mas os autores observaram formas celulares diversas de T. magnifica e verificaram que em algumas havia a formação de brotos na parte de cima do filamento da bactéria que era liberado no ambiente.
“Isto pode representar uma etapa de dispersão no desenvolvimento da bactéria. Eles caracterizaram que a T. magnifica possui um sistema de divisão assimétrica, onde somente uma parte do material genético da célula mãe é passada para a célula filha, esclarece Rosana Ferreira.
Bactéria "antisséptica"?
Outra característica interessante na T. magnifica é a sua superfície livre de micróbios. É comum que biofilmes (comunidades bacterianas) se formem em qualquer superfície, inclusive em outras bactérias, desde que tenham tamanho para comportá-los. Mas a T. magnifica é desprovida dessas bactérias, chamadas “epibióticas”.
“Analisando o genoma de T. magnifica, eles detectaram um número grande de genes relacionados à produção de moléculas antimicrobianas e propuseram que esse seja o motivo de não terem encontrado microrganismos associados à superfície de T. magnifica, mesmo tendo uma superfície grande de contato”, diz Rosana Ferreira.
Gigantes disruptores
Em 2003, a descoberta dos mimivírus — vírus gigantes que podem sintetizar as próprias proteínas e mostram indícios genéticos de que seus ancestrais talvez fossem capazes de se reproduzir sozinhos — abalou as noções prévias de quais eram as características e limites definidores dos vírus.
A aparição no cenário científico de uma bactéria cheia de características inéditas, que supera o tamanho-limite previsto pelos modelos teóricos para um organismo do tipo, pode ter implicações igualmente vultosas.
Mais que novas organelas e múltiplas cópias de genomas, a T. magnifica também carrega em seu citoplasma o potencial de atualizar as concepções dos biólogos sobre bactérias. E de abrir seu leque para encontrar outros gigantes que podem estar por aí há milhares de anos, bem debaixo dos nossos olhos.
Fonte:R7