Raquel do Santana, uma diva empoderada





Não é somente a altura, o bumbum avantajado, a beleza do rosto, a barriga chapada que fazem os olhos se virarem para a negra alta chamada Raquel. É a sua alegria. Muitas vezes, também o alto volume da voz que quer ser ouvida. Sem dúvida chama a atenção por aonde vai.
Quando passa, geralmente alguém buzina, outro grita ou dá tchau. Então, sua felicidade é quando está andando nas ruas do município. Por onde passa vai quebrando preconceitos.
Raquel se cuida, malha muito para manter a forma e tem uma inabalável fé em Deus. E quando os olhares não são de admiração, não liga para os olhares atravessados e segue enfrentando a vida com coragem. Deixou as ruas, não é mais uma profissional do sexo. Destituída de ilusões e questionada sobre o amor, conta que nunca foi de amores, que o amor de travesti é o dinheiro e o conforto. A seu ver, não existe amor para travesti. Amor que tinha era só o de mãe mesmo. “Eu acho que o amor traz muita tristeza, você começa a gostar depois aquilo pode virar para uma depressão, derrubando lágrimas. Isso não é para mim. Deixa para quem quer viver de ilusão, se acariciar em fantasia”, fala com a convicção de quem manda no coração e sabe domar as emoções.
Quanto  à cidade não tem o que reclamar, apenas que as coisas estão um pouco devagar. “Então. não sei na época do prefeito anterior foi bloqueado tudo o que era para ser só alegria. Todos nós sofremos, pois tínhamos uma Araraquara construída de tanta alegria, de tanta luta, tanto merecimento, conhecimentos, méritos. Acho que o governo atual pode recuperar se estiver buscando primeiramente o povo, mas parece que com essas coisas de política, as pessoas confundem e têm que entender que o Edinho é prefeito da nossa cidade, então, o bem que ele vem fazendo é para nossa cidade. Veem o partido, o PT, generalizam, mas venho observando que desde quando Edinho entrou muita coisa melhorou. O mundo está tão evoluído, tudo não é só parada gay”.

Um pouco de Richard
Richard Henrique Aparecido de Paula nasceu em Araraquara no dia 5 de junho de 1976. Filho de Reinaldo Benedito Jerônimo de Paula e de Maria José Bonifácio de Paula e irmã(o) mais novo de Flaviana Carla.
A infância bem como grande parte de sua vida foi passada no bairro de Santana e desde a mais tenra idade lidava com animais, pois o pai possuía cavalos, cabeças de gado, aves como galinhas e patos. A área de terra era imensa, três terrenos em um só.
Richard se recorda que em razão de tomar conta dos animais, na escola o chamavam de Negrinho do Pastoreio. “Eu era pequenininho e montava naqueles cavalos grandes e passava para ver meus amigos na Escola Elisa Sambiase Bachi, atual Morumbi. Anos depois mudaram o nome da escola, onde estudei até a oitava série. Então, até os meus 17 anos a gente mexia muito com a parte rural. Tínhamos grandes hortas. Morava no Santana, na 17, e logo mais abaixo de onde a gente residia era muito mato, nem existia o Morumbi”.
Richard se lembra que grande parte do que se cultivava ou criava na área em que moravam, embora o pai fizesse algumas barganhas, era para o consumo da própria família.

Divisor de águas - Raquel
Questionado sobre quando ‘deixou’ de ser Richard e passou a ser Raquel, ela diz que não pegou ninguém de surpresa. “Desde criança meus familiares notaram que eu tinha um jeito de gayzinho”.
Em Araraquara, dos 14 aos 17 anos frequentava a cultura do samba, o Baile do Carmo. Defendia uma grana trabalhando em uma pizzaria e limpando jardins para as patroas de sua mãe.
Aos 18 anos, algumas primas de sua mãe, que estavam divorciadas, cabelereiras, que moravam na capital e livres de qualquer preconceito, sugeriram a ela que o deixasse ir para São Paulo fazer um curso de cabelereiro e que lá havia muitos com a mesma orientação sexual que ele que viravam travestis.
Com a morte do pai, que nutria por ele um grande preconceito, armou-se de coragem e foi para São Paulo. Foi recebida pelas mulheres da família, primas de sua mãe, na Liberdade.
Com o tempo fez um curso de cabelereiro fez um curso de maquiagem trança africana, cortes de cabelo em uma ong da Mancha Verde.
Mas quando chegou não foi para as casas dos familiares e sim para a casa de uma cafetina, na Liberdade, na Rua dos Estudantes. Quando chegou foi um alvoroço. Como ele mesmo diz era carne nova no pedaço, além disso, chamava a atenção pelos seus belos traços. “Entrei ali como dama de companhia e uma espécie de recepcionista abrindo o portão para as meninas que iam trabalhar no oficio. Lá foi batizada com o nome de Raquel por uma travesti chamada Elba.
Ali naquela casa acabou também assumindo o compromisso de tomar conta do marido da cafetina que havia ficado doente, mas chegou uma hora que não aguentou mais viver aquilo. Deixou os afazeres na referida casa, mas continuou morando no lugar. Pagava diária para a cafetina.
Depois de um ano e um período em Araraquara, Richard já assumindo o nome de Raquel, foi morar no Belenzinho onde ficou por quase cinco anos.
Vale ressaltar que a cafetina também se mudou para o lugar. Ela era chamada de bombadeira, pois aplicava silicone nas travestis.
Depois de certo tempo a cafetina foi embora para Portugal e lá acabou morrendo de tuberculose. O marido que na época agonizava e ela se recusava a cuidar está vivo e muito bem, com apartamento e carro na garagem.
Com essa reviravolta, Raquel votou para o Parque Dom Pedro, no Treme Treme, onde vivia do corpo. “ Depois do Treme Treme a gente fazia ponto na Cruzeiro do Sul. Depois disso muitas das amigas se dispersaram. Algumas morreram, outras foram embora. Mas ainda tem uma que sempre encontro, a Kilma”.

O retorno
Para Araraquara, Raquel voltou em 2001, pois estava doente, com os pulmões afetados por uma tuberculose. Curada, ficava se revezando entre Araraquara e São Paulo, aliás, cidade que adora, pois não ‘olham’, não criticam e nem apontam ninguém. “Se você vive no lixo ou luxo ninguém vê. Sabe que tem as diferenças, mas ninguém vê os seus tombos. É um lugar onde você precisa pensar em você”.
Já ficar em Araraquara nunca foi difícil, pois sempre foi um travesti negro que cresceu dentro da sua cidade.

Sua famíliaOs pais morreram cedo, seu aos 39 anos. Ele era pouco mais que um menino. Tinha 17 anos.
A família cresceu junto com a cidade. Sua bisavó era chamada Dona Aparecidona, por conta da alta estatura que era de 1,92m. Era casada com um português, o José de Paula e com ele teve Noemia e Benedito de Paula, eletricista da Fepasa que se casou com Josafa e dessa união nasceu Reinaldo, pai de Richard que assim como os outros irmãos tornou-se eletricista.
Ele conta que o pai foi covardemente assassinado na cadeia, pois uma moça o acusou de estupro em 1997. “Um radialista da cidade praticamente o condenava e nem tinha feito corpo de delito. Ele foi preso e lá na cadeia os policiais, segundo Richard, já haviam passado que ele era conhecido como Reinaldo do Santana e que havia sido fundador do bloco Catados na Rua. Ele foi acusado, na verdade, por uma de suas inúmeras amantes. Quando chegou na hora de ser preso, meu pai se recusou a ir para uma cela de segurança para preservar sua integridade física, mas ele se recusou. Disse que não devia nada, que estava sendo injustamente acusado e que se fosse para morrer ia morrer como homem. Quando ele entrou não saiu com vida. Foi assassinado”.
Segundo Richard, todo o fato chocou Araraquara. “Ele era tão conhecido que no velório dele foi o prefeito da época e vários delegados e pessoas que não acreditavam naquele crime hediondo e em sua inocência”. 
Fundador do Bloco Catados na rua, o pai de Raquel, Reinaldo foi praticamente esquecido, mas Raquel exige e luta por esse reconhecimento de certa forma usurpado. “Meu pai chegou a ser homenageado com o tema: por que não trocaram as armas por flores. Estou em busca de direitos e de reconhecimento da existência e da memória da minha família. Minha avó e meu pai, por exemplo, cortaram tanta cana, apanharam tanta laranja para alguém ignorar a existência deles”.
Quando perdeu a mãe em um acidente de moto em 2003 a mesma estava em um mototáxi quando caiu. “Esse mesmo radialista que praticamente incitou a violência contra meu pai quis manchar a conduta de minha mãe dizendo que ela estava bêbada por isso caiu da moto”.
Engajada, Raquel foi uma das primeiras a participar da campanha ‘Araraquara sem preconceito’ em 2012. “Foi no dia mundial da luta contra a homofobia”.
Ela conta que a libertinagem, a falta de educação e de postura, atitudes caricatas e exageradas colaboram para a discriminação. ‘Aprendi com as travestis de São Paulo quando fazia ponto a nunca abaixar as calças, a mostrar o bumbum. Quem quisesse que viesse até mim”.
Raquel conta que recebeu muitas orientações, pois muitas poderiam estar perto de escolas. Como uma mulher trans negra fui muito bem prendada e comportada. Tanto que só uso calça jeans ou vestido longo. Não é porque sou uma mulher negra trans que não mereço respeito e que tudo é permitido”.
Atualmente Raquel está entrando com o nome social que deverá ser Raquel do Santana Aparecida de Paula.
Questionado(a) sobre se incomoda se alguém chama-lo de Richard, ressalta que não, pois tem conhecimento da naturalidade, da sua origem e que o nome Raquel foi dado depois que se tornou uma transexual. “Só me chama de Richard quem teve uma convivência, quem me viu nascer e me viu crescer”.
Raquel conta que é uma luta diária esta busca pela recuperação do seu imóvel, pois o mesmo sofreu uma invasão há nove anos. Chegaram a levantar um muro bem alto para que não tivesse acesso. Por conta disso chegou a morar na Casa Transitória. “Quero voltar a estudar”.

(OLHO)“Estou em busca de dignidade”


texto e foto: jornal o imparcial araraquara