Cortar na própria carne não é uma metáfora para muitos adolescentes. A disseminação da prática da automutilação em redes sociais dá uma pista sobre um problema que, no estado de São Paulo, preocupa um número crescente de especialistas e escolas, que têm organizado palestras e eventos sobre o tema. Psiquiatras cariocas já falam em “epidemia” de um castigo autoinfligido para, na ótica dos jovens, minorar sofrimentos emocionais ou psicológicos. E alertam: grande parte dos pais sequer percebe que os filhos têm se cortado com canivetes, lâminas de barbear e até lâminas de apontadores de lápis.
Administradora de uma das páginas sobre automutilação no Facebook, com mais 10 mil “curtidas” em menos de um mês de criação, A., de 15 anos, diz que o intuito não é incentivar, mas ajudar os jovens que sofrem do mesmo problema, sem julgá-los. Na rede, eles postam fotos das feridas e trocam experiências e telefones para formar “grupos de autoajuda” pelo aplicativo Whatsapp. A menina conta que fez o primeiro corte com um compasso há três anos e, desde então, só conseguiu ficar sem se mutilar por, no máximo, cinco meses.
— Começou na sala de aula, e me arrependo bastante. Falo muito com os curtidores da página para nunca darem o primeiro corte, pois se torna um vício. Depois desses meses, meus cortes, que antes eram leves, acabaram só aumentando e ficando fundos, deixando cicatrizes — conta A., aluna de um colégio estadual do Rio que diz ter aderido aos cortes por conta de traumas de infância e familiares, sobre os quais se recusa a falar.
O pai dela mora em Minas Gerais, e a mãe, no Rio, não desconfia do problema. Há uma semana, a adolescente foi chamada pela direção de sua escola, que percebeu o comportamento:
— As diretoras conversaram bastante comigo, e implorei que não contassem para minha mãe. Prometi que não ia me cortar mais lá dentro. Mas (ao fazer isso), sinto alívio na dor sentimental, troco-a pela física. Pelo menor por um momento eu me sinto livre de tudo. Esse é o problema: acaba dando vontade de me cortar compulsivamente.
Na última edição do Manual Diagnóstico e Estatístico de Doenças Mentais (DSM-5, na sigla da Associação Americana de Psiquiatria), a automutilação sem intenção de suicídio ficou sob observação para ser tratada como um transtorno isolado, apesar de estar comumente associada a comportamentos obsessivos compulsivos e outras síndromes, como a de Borderline. De acordo com o psiquiatra Olavo de Campos Pinto, membro do International Mood Center e ex-professor da Universidade da Califórnia (EUA), o principal público atingindo são meninas de 13 a 17 anos. A internet tem papel preponderante na disseminação atual da prática, que ele chama de epidêmica.
— Nessa idade, a pessoa não tem a personalidade formada e assume um comportamento de grupo altamente perigoso. As redes sociais são multiplicadores, o principal combustível, e (a automutilação) está se tornando uma epidemia. É uma maneira de lidar de forma impulsiva e destrutiva com frustrações e ansiedades. Tenho visto cada vez mais casos na pré-adolescência. É assustador — diz Campos Pinto. — Estudos de condução nervosa sugerem que, quando há uma sensação de frustração, o corte alivia a dor psíquica. Há um alívio imediato, mas, quando passa, vem uma sensação de vergonha, de arrependimento, de ser descoberto no seu ato.
Anteontem, o Colégio Sacré-Coeur de Marie, em Copacabana, Zona Sul do Rio, realizou uma palestra sobre o tema com psicólogas. O público-alvo eram alunos do 7º ano, e a programação fez parte de um evento em que os adolescentes escolhem os assuntos debatidos. Alguns choraram, outros saíram do auditório durante a apresentação. Orientadora educacional do ensino fundamental II, Clícia Belo conta que os primeiros casos surgiram quando a cantora teen Demi Lovato assumiu que se automutilava. As redes sociais trouxeram de novo o fenômeno à tona.
— Há uma percepção de que está numa crescente muito grande, sobretudo por causa das redes sociais, como produção de autossubjetividade. Muitos acabam praticando algum episódio para tentar acompanhar um grupo. A escola é espaço de possibilidades de coisas que, em casa, não se pode conversar pela sensação de incompreensão, inutilidade, culpa, desamparo e desamor — explica Clícia.
Aluno do 7º ano, X., de 12 anos, faz terapia há quatro e diz que às vezes sente vontade de se cortar, mas que nunca teve coragem:
— Penso em me cortar, mas sinto que não posso fazer isso e sinto dores de cabeça, nervosismo, aflição, muito estresse. Fico tremendo às vezes, e o pensamento dói. Mas sinto que não posso me automutilar porque seria muito torturante. Não posso contar para os meus pais para não envergonhá-los. Contei para minha terapeuta, e ela fez com que eu pensasse que não vai durar para sempre. Procuro me distrair e ver um filme.
A psicóloga clínica Elisa Bichels diz que já atendeu a mais de 80 pacientes de 13 a 16 anos com casos de automutilação, todos de classe média e alunos de escolas particulares do Rio. Segundo ela, além dos cortes, há outras formas de autoagressão como queimaduras, menos usuais. Ela também afirma que o aumento da incidência está ligado às redes sociais.
‘ANIVERSÁRIO’ DA CICATRIZ
— Há quem se utilize de um ato autolesivo pela dor, mas outros (o fazem) porque todo mundo está fazendo, para ver qual é. Há blogs que ensinam qual a melhor lâmina, em que parte do corpo você tem mais alívio. A questão maior é convencê-los de que as informações da internet não são verdadeiras. Para dar vazão instantaneamente àquela angústia enorme, eles deslocam o sofrimento. Por isso, vira uma compulsão. Eles ficam prestando atenção ao corte, comemoram o aniversário da cicatriz.... Muitas vezes já consegui evitar lesões conversando com eles pelo WhatsApp — conta Elisa.
A terapeuta cognitivo-comportamental explica que a duração do tratamento depende da gravidade das lesões e do tempo das práticas de automutilação. Para além do óbvio risco de infecções e doenças, há as marcas psicológicas, mais difíceis de apagar. Aluna de uma escola particular de Santa Cruz, Zona Oeste da cidade, Y., de 15 anos, está se tratando há um ano, mesmo período em que está sem se cortar, depois de sua mãe ver as marcas e cicatrizes em suas coxas. Ela conta que descobriu a prática em páginas no Tumblr.
— No meu caso, foi para aliviar frustrações. Quando criança, eu era bem gorda. Apesar de ter emagrecido, me comparava muito com meninas da minha escola. Via posts de garotas que se autoflagelavam por não conseguir atingir metas de dietas. Vi nisso um Norte. Fazia os cortes com lâmina e apontador. É como se estivesse tirando tudo dentro de mim. Hoje, tenho ajuda de uma psicóloga e estou bem melhor. Mas já passei por momentos complicados em que pensei em me cortar de novo. É uma recuperação para o resto da vida.
Coordenadora de saúde da escola municipal do Ginásio Experimental Olímpico Juan Antonio Saramanch, em Santa Teresa, Angélica Bueno diz que o problema já foi detectado ali:
— São meninos e meninas de, às vezes, 12 anos. Estamos tratando dessa questão com as famílias e com profissionais da saúde.
Fonte; O GLOBO