Sem lockdown, pandemia está descontrolada no Estado, garante professor da UFSCar




O médico especialista em epidemiologia, clínica médica e medicina intensiva, Bernardino Geraldo Alves Souto, com mestrado, doutorado e pós-doutorado em infectologia, professor no Departamento de Medicina e no Programa de Pós-graduação em Gestão da Clínica e coordenador técnico do Comitê Gestor da Pandemia da UFSCar fez um alerta durante entrevista ao São Carlos Agora na manhã desta quinta-feira, 1º: o Estado de São Paulo não está em lockdown.



Apesar do toque de recolher imposto pela fase emergencial do Plano São Paulo, imposto pelo governo estadual, das 20h às 5h, seria necessária ações muito mais rigorosas para conter o avanço da Covid-19.


Segundo Souto, até o momento os governantes não souberam lidar com a pandemia que está descontrolada em todo o país e o cenário pode ser ainda mais assustador, com mais mortes nos hospitais e em filas de espera.


Souto foi sabatinado pelo portal e de forma esclarecedora, não se furtou a responder todos os questionamentos. Segundo ele, a saúde está em ‘frangalhos’, com a falta de medicamentos, o esgotamentos dos profissionais de saúde.


Condenou ainda o negacionismo de parte da população e a falta de consciência daqueles que não se cuidam, ao não obedecer os protocolos de segurança solicitados pelas autoridades sanitárias.


“É mais do que urgente a necessidade de que a sociedade e os governantes assumam seu papel no controle da Covid-19. Muitos cidadãos não estão colaborando, porque não conseguem ou porque são negligentes, e quase todos os governantes não têm feito praticamente nada do que lhes é possível contra a pandemia. Na sociedade, precisamos entender que a cada vez que uma pessoa sai de casa sem necessidade, especialmente sem usar máscara ou usando incorretamente, sem cuidar do distanciamento físico e das medidas higiênicas adequadas, ela está colaborando para manter o vírus circulando na comunidade; mesmo que aparentemente nada aconteça com ela, ela ajuda a trafegar o vírus de um lugar para outro. Este vírus circulando intensamente na comunidade poderá afetar alguém ao ponto de levar a pessoa à morte. Isso significa que negligenciar os cuidados para não contrair, não transmitir e não trafegar o vírus torna a pessoa cúmplice da morte de outras. É como se eu saísse por aí atirando a esmo, matando algumas pessoas com minhas balas perdidas”, alertou Souto.


São Carlos conta hoje com 216 mortes causadas pelo SARS-CoV-2. Tem ainda 13.944 casos positivados, dos quais 13.139 recuperados.


A ENTREVISTA


São Carlos Agora - Estamos de fato em lockdown? Em caso negativo, como deveria ser esta fase no Estado de São Paulo?


Souto - Não estamos em lockdown. No atual momento da pandemia, precisaríamos fazer esta fase emergencial mais rigorosa, inclusive proibindo a circulação não essencial das pessoas pelas ruas e espaços públicos, suspendendo totalmente o transporte coletivo, montando barreiras sanitárias e estratégias de confinamento, qualificação operacional da vigilância epidemiológica para garantia efetiva de isolamento precoce de infectados, testagem e isolamento em massa, suporte socioeconômico aos prejudicados por estas medidas, bloqueios sanitários, vacinação célere e em massa e outras medidas individuais como uso sistemático de máscara, higiene e distanciamento físico. Só a articulação integrada dessas medidas em âmbito regional poderá ajudar no controle da epidemia. Medidas parciais, focais e isoladas não serão suficientes para o controle da pandemia. O plano São Paulo apenas ajuda a reduzir intermitentemente a sobrecarga hospitalar e não tem efeito sobre o controle da pandemia nem sobre a mortalidade acumulada. Mesmo esta fase emergencial, feita com prazo definido e sem articulação com outras medidas, o máximo que fará é o que o plano São Paulo já está fazendo: poderá reduzir temporariamente a sobrecarga hospitalar sem alcançar controle efetivo da pandemia.


SCA - A denominada ‘Fase Emergencial’ do Plano São Paulo que irá vigorar até dia 11 de abril. Como o senhor define? De fato evita a propagação do novo coronavírus?


Souto - Esta fase emergencial, por reduzir um pouco a circulação e a aglomeração de pessoas, poderá colaborar para reduzir também a circulação do vírus, o número de novos casos e de novas mortes, diminuindo a sobrecarga hospitalar temporariamente sem controlar efetivamente a pandemia. Este efeito de redução do número de novos casos e novas mortes poderá ser sentido a partir de, aproximadamente, três semanas após a instalação das medidas mais restritivas. Feito isoladamente, sem o acompanhamento das outras medidas, por tempo determinado e sem planejamento estratégico da sua flexibilização, a fase emergencial terá apenas este efeito de reduzir a sobrecarga hospitalar temporariamente. Ao ser flexibilizado também sem as outras medidas, a situação poderá piorar novamente e obrigar a repetir a fase emergencial intermitentemente; levando a uma condição do Plano São Paulo que se antes oscilava entre o amarelo e laranja, poderá oscilar entre o vermelho e o roxo, acumulando novos doentes e novas mortes ao longo do tempo sem submeter a pandemia ao controle que precisamos.


SCA - Mesmo diante de tantas medidas restritivas, vemos no dia a dia (inclusive São Carlos) pessoas caminhando sem máscaras, caminhando sem os devidos cuidados. Porque agem desta forma?


Souto - Muita gente não está suficientemente informada para agir de outra maneira; outras estão descrentes e confusas diante de tanta notícia e informação errática ou falsa; outras estão influenciadas por formadores de opinião equivocada ou politicamente comprometida com interesses que não são o do bem-estar social; outras têm dificuldade psicológica em lidar com frustrações e adversidades; outras estão impregnadas pela cultura individualista e não conseguem perceber a importância da ação coletiva e solidária, etc. Estamos vivendo um momento da existência humana em que todos precisamos interromper temporariamente nossos planos e projetos para que muitos não tenham que perder o seu; todos precisamos interromper temporariamente o fluxo da vida para que muitos não percam definitivamente a sua. O problema é que muita gente não tem compreensão disso ou não tem maturidade, solidariedade ou amor suficientes para fazer este movimento.




SCA - Acredita que falta mais campanha educativa para orientar a população ou penalizações mais severas para que elas passem a obedecer os protocolos de segurança?


Souto - Falta: campanha educativa; informação confiável e de qualidade; subsídio social, econômico e assistencial para as pessoas em condição de vida prejudicada; exemplo e ação dos governantes pelo combate efetivo à pandemia e várias outras coisas.


SCA - A negação da doença, o viés político e até mesmo a ignorância. Até onde tudo isso atrapalha o combate ao SARS-CoV-2?


Souto - O efeito do negacionismo, do oportunismo político desonesto e da ignorância está nos números da Covid. Atualmente, somos o país que mais mata diariamente por Covid no mundo. Estamos com a epidemia totalmente fora de controle, o sistema de saúde em frangalhos, sem acesso à vacina na medida necessária, e ainda sob a expectativa de que a situação vai piorar nas próximas semanas. Portanto, a negação da doença, o viés político e a ignorância atrapalham para muito além do que se possa imaginar.


SCA - Essas novas variantes do novo coronavírus atrapalharam o combate a pandemia?


Souto - As novas variantes são consequência da falta de controle da pandemia. Quando mais o vírus se reproduz, quanto mais circula entre as pessoas, mais mutação ele pode sofrer. Uma dessas mutações foi muito ruim porque aumentou mais ainda o espalhamento do próprio vírus, dificultando ainda mais o controle da pandemia; vira um ciclo vicioso que tem seu início na falta de combate eficaz contra a pandemia. Portanto a situação em que nos encontramos hoje culpa do vírus ou das novas variantes, mas, da nossa falta de controle sobre a pandemia. Se resolvermos efetivamente fazer o que é necessário, novas variantes deixarão de ser problema importante porque terão menos oportunidade para se desenvolver. Epidemia descontrolada como está, ao mesmo tempo em que vacinamos com muita lentidão a população, é um substrato bastante favorável ao desenvolvimento de novas variantes com potencial, inclusive, se resistirem ao efeito da vacina.


SCA - Frequentemente o comércio (na maioria dos segmentos) afirma que está sendo prejudicado e pode falir e demitir. Qual seria a forma de fazer com que isso não ocorresse?


Souto - O governo tem a obrigação de criar um plano estratégico de socorro a todos os prejudicados pelas necessárias medidas de combate à pandemia. No caso brasileiro isto não foi feito até agora. Em situações de crise financeira, os governos socorrem os bancos, mas, não fazem o mesmo com os trabalhadores e os pequenos produtores e negociantes. Nesta pandemia não está sendo diferente. Os pequenos negócios e os trabalhadores, mais uma vez, não foram incluídos nos programas de suporte social e econômico que a situação exige. Quem está quebrando o comércio não é a pandemia nem as medidas necessárias para combatê-la. É o governo que não os protege neste momento em que esta proteção é tão necessária; é o não combate à pandemia. Combater a pandemia é investimento, não é custo. Quanto mais grave a pandemia, maior o prejuízo. Entretanto, a inversão deste raciocínio, como se combater a pandemia fosse um fator de perda econômica leva o sistema produtivo à falência.


SCA - Estamos na pior fase da pandemia com aproximadamente 4 mil mortes por dia no Brasil. A tendência é piorar, se manter ou acredita que chegamos ao pico da infecção?


Souto - Os indicadores epidemiológicos frente a ausência de medidas para resolver esta situação apontam para um cenário de piora. A curva epidêmica de novos casos e de novas mortes ainda está subindo em elevada inclinação sem que tenha dado sinais de, pelo menos, estabilização. Caso tenhamos a sorte de alcançar alguma estabilização, poderá ser em um patamar intolerável de novos casos e de novas mortes diárias.


SCA - Ainda sobre este assunto, a falta de leitos e medicamentos pode aumentar os trágicos números?


Souto - Com certeza. Hospitais sobrecarregados, falta de insumos e profissionais desgastados degenera a qualidade do cuidado e aumenta eventos adversos hospitalares, podendo resultar em maior letalidade da doença. Neste caso, poderá não só aumentar a letalidade da Covid-19 quanto incrementar mortes por outros problemas, aumentando a mortalidade geral na população.


SCA - Considerações finais


Souto É mais do que urgente a necessidade de que a sociedade e os governantes assumam seu papel no controle da Covid-19. Muitos cidadãos não estão colaborando, porque não conseguem ou porque são negligentes, e quase todos os governantes não têm feito praticamente nada do que lhes é possível contra a pandemia. Na sociedade, precisamos entender que a cada vez que uma pessoa sai de casa sem necessidade, especialmente sem usar máscara ou usando incorretamente, sem cuidar do distanciamento físico e das medidas higiênicas adequadas, ela está colaborando para manter o vírus circulando na comunidade; mesmo que aparentemente nada aconteça com ela, ela ajuda a trafegar o vírus de um lugar para outro. Este vírus circulando intensamente na comunidade poderá afetar alguém ao ponto de levar a pessoa à morte. Isso significa que negligenciar os cuidados para não contrair, não transmitir e não trafegar o vírus torna a pessoa cúmplice da morte de outras. É como se eu saísse por aí atirando a esmo, matando algumas pessoas com minhas balas perdidas. A propósito, poderá colaborar para a própria morte ou a morte de entes queridos. No âmbito dos governantes, deixar de adotar as medidas necessárias ao combate à pandemia tem efeito genocida. Estes são os efeitos que estamos vendo relacionados à Covid-19 devido ao modo como os governantes boa parte da sociedade têm se comportado em relação à pandemia.


Fonte: São Carlos Agora