Secas e ciclones: verão de 2024 deve ser marcado por eventos climáticos extremos, diz cientista

 




Segundo a OMM (Organização Meteorológica Mundial), 2023 foi o mais quente em 174 anos de medições meteorológicas. A temperatura média da superfície global ficou 1,4°C acima da média histórica, que é de 22,9ºC segundo o Inmet (Instituto Nacional de Meteorologia), superando os anos de 2016, com 1,29°C acima da média, e 2020, com 1,27°C acima da média.

Tempestades e secas estão mais intensas por causa do aquecimento global, explica Carlos Nobre

Tempestades e secas estão mais intensas por causa do aquecimento global, explica Carlos Nobre

DIVULGAÇÃO

No Brasil, o impacto desse aquecimento pôde ser sentido nos ciclones vistos no Rio Grande do Sul, na seca recorde no rio Amazonas e nas ondas de calor que atingiram os estados do Sul e Sudeste no segundo semestre deste ano.

Esses fenômeno devem continuar sendo registrados nos próximos três meses de verão, que começou na sexta-feira (22) no Hemisfério Sul, segundo o professor e climatologista Carlos Nobre, um dos maiores especialistas em mudanças climáticas do planeta.

Pesquisador sênior do Instituto de Estudos Avançados e da USP, copresidente do Painel Científico para a Amazônia e um dos autores do 4º Relatório do Painel Intergovernamental em Mudanças Climáticas (IPCC), que foi agraciado com o Prêmio Nobel da Paz em 2007, Nobre diz que ainda dá tempo de impedir o aquecimento global. "Impossível não é. É difícil", afirma. Ele conta o que precisa ser feito a seguir.

Tivemos um recorde de temperaturas em todo o planeta

 CARLOS NOBRE, CLIMATOLOGISTA E PROFESSOR

O ano de 2023 foi o mais quente da história recente. O que explica isso?
No último ano de La Niña [fenômeno meteorológico que esfria as águas do oceano Pacífico e, consequentemente, reduz a temperatura do planeta], a temperatura ficou 1,15ºC acima da média. Em 2023, vem o El Niño [que aquece as águas do oceano Atlântico], e a temperatura global fica 1,4ºC acima da média. Além disso, [a temperatura] no oceano Atlântico, ao norte do Equador, também bateu recorde. Então nós tivemos um recorde de temperaturas em todo o planeta.

Como isso está relacionado aos fenômenos climáticos vistos em 2023?
Esses eventos extremos estão muito associados ao El Niño e ao aquecimento do Atlântico. Foi isso que causou a seca histórica na Amazônia, e a projeção é de que causem uma seca no semiárido do Nordeste em fevereiro, março, abril e maio. Mas essa era para ser a estação chuvosa [do semiárido nordestino]. O El Niño também faz as frentes frias ficarem estacionadas no sul do Brasil, gerando esses ciclones extratropicais que causaram o maior número de mortes ali do Rio Grande do Sul, [com a inundação] do rio Itacoari. E, como as frentes frias ficaram estacionadas, não avançaram, houve um recorde de ondas de calor no Centro-Oeste e no Sudeste do país. Essas coisas todas estão interligadas.

Os grandes incêndios no Hemisfério Norte também estão interligados?
Houve recorde mundial de incêndios em 2023 [grandes queimadas foram registradas no Havaí (EUA), no Canadá e na Europa]. Todos esses incêndios são de origem natural. No Canadá, por exemplo, houve uma seca intensa durante a primavera, a vegetação ficou muito inflamável. E aí, quando você tem uma descarga elétrica, de um raio, essa vegetação pega fogo. Se a água da chuva que vem junto com o raio não for suficiente para apagar o fogo, o incêndio propaga, como foi nesses países. No Canadá, começou a pegar fogo ali no fim de maio e o incêndio permaneceu por vários meses. E o Canadá tem um grande projeto de restauração florestal. Mas emitiu muito mais gás carbônico do que em qualquer ano anterior, por causa dos incêndios. Então, isso é o extremo climático, que também teve na Califórnia e em países da Europa, que também teve recorde de temperatura.

Qual o papel do aquecimento global nisso?
Esses fenômenos meteorológicos [como o El Niño e o La Niña] são naturais. Mas o aquecimento global está fazendo com que muitos desses fenômenos naturais, como as secas, incêndios e chuvas, que sempre existiram, agora batam recordes de intensidade. E os eventos extremos vão se tornando mais frequentes.

Quais as projeções para 2024?
Como o El Niño vai continuar durante este verão, nós vamos esperar chuvas acima da média no Sul, secas pronunciadas na Amazônia e no semiárido do Nordeste e a continuidade de ondas de calor no Sudeste e no Centro-Oeste. Além disso, como [o planeta] está muito quente, o oceano Atlântico evapora muita água, então podemos ter picos de chuva e, de novo, ciclones lá no Sul. Isso tudo vai até meados do ano que vem. Depois de meados de 2024, o El Niño já terá enfraquecido muito, no segundo semestre já terá desaparecido. Aí, lógico, a temperatura global cai um pouco. Mas ela não vai voltar para o mesmo patamar de 2022, talvez fique 1,4ºC [acima da média histórica].

Nós estamos caminhando na velocidade oposta para salvar o planeta

 CARLOS NOBRE, CLIMATOLOGISTA E PROFESSOR

Quais os efeitos disso para o planeta?
Os estudos todos mostram que, se nós continuarmos aumentando as emissões de gases do efeito estufa no atual ritmo, o planeta, pela primeira vez, ficará 1,5ºC mais quente do que a média histórica. Isso só deveria acontecer em 2050. Se esse aumento for permanente, a gente vai extinguir 90% dos corais, e isso vai levar à extinção milhares de espécies de peixes e de outras espécies aquáticas. 

Onde falhamos?
A explicação é que a gente continuou aumentando muito as emissões de gases do efeito estufa. Por exemplo, a gente aumentou em 50% a concentração do gás carbônico na atmosfera, aumentou em 150% a concentração do metano e também aumentou muito a concentração do óxido nitroso — esses são os três principais gases antrópicos, gases que não são um fenômeno natural. Esse aumento foi muito grande nos últimos 30 anos, desde a Rio 92. O ano de 2022 bateu o recorde mundial de emissões, e 2023 vai bater o recorde de 2022. E todas as estimativas mostram que essas emissões não vão diminuir antes de 2030, infelizmente. Segundo o IPCC [Painel Intergovernamental de Mudanças Climáticas, organização que faz parte da ONU e estuda o aquecimento global], as emissões deveriam se estabilizar em 2025, mas não é isso que vai acontecer.

Por quê?
Eu estive na COP28, e fica muito claro que, principalmente por causa dos combustíveis fósseis [carvão, petróleo, gás natural], as emissões de gases vão continuar subindo [nos próximos anos] e, com sorte, elas param de crescer em 2030. Quase 70% das emissões vêm da queima de combustíveis fósseis. E o setor de energia fóssil quer uma transição lenta para outro modelo. A gente não está caminhando na velocidade certa, ao contrário, nós estamos caminhando na velocidade oposta para salvar o planeta.

Por que é tão importante reduzir as emissões até 2030?
Porque se você começar a aquecer muito o planeta e passar de 1,5ºC [acima da média histórica], você tem o risco de degelar o solo congelado da Sibéria, do Canadá e do Alasca, que é chamado permafrost. Esse permafrost tem uma gigantesca quantidade de carbono e metano, que estão presos lá há milhões e milhões de anos. Esses gases estão presos no solo congelado, não é só no gelo em cima. Se a gente passar desse limite [de 1,5ºC], nós vamos liberar mais de 100 bilhões de toneladas de gases do efeito estufa desse solo congelado na atmosfera. Isso é chamado de ponto de não retorno, a temperatura nunca vai voltar ao que era antes.

Outro ponto de não retorno seríssimo é o da Amazônia. Se a temperatura continuar subindo, há um enorme risco de perder, no mínimo, 50% da Floresta Amazônica. E eu não estou falando aqui de desmatamento, eu estou falando da degradação da floresta. A floresta densa, tropical, ela vira um ecossistema degradado, de céu aberto, com poucas árvores, perde mais de 250 bilhões de toneladas de gás carbônico. O planeta está cheio desses pontos de não retorno.

Nós estamos criando todas essas mudanças

 CARLOS NOBRE, CLIMATOLOGISTA E PROFESSOR

Não é de hoje que se fala da importância de evitar o aquecimento global. Ainda dá tempo de impedir que a temperatura do planeta suba de forma definitiva?
Tudo que está acontecendo não é fenômeno natural, nós é que estamos criando todas essas mudanças. Praticamente todos esses eventos extremos que nós estamos vendo aumentar em todo o mundo, somos nós os responsáveis. Impossível não é. É difícil. Minha expectativa é muito grande para a COP30 [30ª Conferência da ONU sobre Mudanças Climáticas], em Belém, em 2025.

O que deve acontecer até lá?
Na COP28 [em Dubai, nos Emirados Árabes Unidos], aconteceu o lançamento de um projeto do qual eu faço parte chamado Arco da Restauração Florestal, que tem o objetivo de restaurar 240 mil quilômetros quadrados da Amazônia brasileira. Isso é quase que o tamanho do estado de São Paulo, e isso é muito importante para salvar a Amazônia do ponto de não retorno. Isso vai retirar uma grande quantidade de gás carbônico da terra, da atmosfera, vai baixar a temperatura [do planeta], manter os serviços ecossistêmicos da floresta e proteger a biodiversidade.

Além disso, de janeiro até meados de novembro, o Brasil já reduziu cerca de 55% dos desmatamentos na Amazônia. Se o Brasil e os outros países da região amazônica, países da África, a Indonésia continuarem reduzindo os desmatamentos, como reduziram neste ano, haverá uma pressão maior para reduzir o uso de combustíveis fósseis. Na hora em que todos os países tropicais reduzirem as emissões, e são todos os países em desenvolvimento, eles vão ter uma força política na COP30 de botar os produtores de petróleo, carvão, gás natural, contra a parede e falar: “Olha, nós já estamos cumprindo o nosso compromisso, vamos zerar todas as emissões até 2030. E vocês?” Aí vamos ver se eles respondem.

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