São Carlos, uma ilustre aniversariante, chega aos 163 anos




O aroma de uma antiga cidade se guarda na memória das chaminés das empresas de torrefação de café da baixada do mercado municipal. O gosto também é o de um bom café passado na hora numa de suas esquinas. O som é do apito da fábrica que anunciava novas manhãs. O clima, aquele da velha brisa e das quatro estações num só dia. E a visão, a das chaminés do Facchina e da Serraria Santa Rosa, ou da figura de Ronald Golias em cena - o são-carlense mais famoso e eternamente lembrado.


Todos os sentidos se fundem na lembrança. “Surpreender-se é começar a entender”, dizia a frase grafitada num muro perto de casa, quando minha família desembarcou vinda de Boa Esperança do Sul no começo dos anos 1970.


Pude compreender, tempos depois, que aqueles dizeres eram o epitáfio da São Carlos de um passado que não conheci. Foi substituída e aquele era o momento da mudança. Até mesmo o trem de passageiros, laço com o tempo em que a ferrovia soprou ventos de progresso, era algo que ficava para trás.


Nas ruas o asfalto já encobria os paralelepípedos e dos bondes sobrava apenas o “Da Saudade” na praça da piscina municipal, logo também remetida ao passado. Os casarões do centro sobreviviam aos tempos da “cidade das casas amarelas”. Mas entre edifícios de tom pastel, surgia outra cidade. De um vigoroso e diversificado centro fabril e de universidades públicas e centros de pesquisa.


Não há lugar que deixe de revelar a alma de seu povo e confessar, mais cedo ou mais tarde, a sua identidade. As cidades médias do interior guardam semelhanças tantas que parecem cópias umas das outras e até mesmo a insígnia do brasão de armas são-carlense demonstra similaridade ao dizer: “Venho dos Bandeirantes”.  Poderia ser: “Venho do Café”.


Ainda assim São Carlos possua sutis diferenças. É singular, por exemplo, ao colocar um olho no futuro e outro no passado. Hoje é ainda a cidade dos casarões, mas também a Capital da Tecnologia. A cidade da Festa do Clima e do Festival Chorando Sem Parar; da Festa do Milho e do Pint Of Science.


Tal qual uma mulher, a cidade que nasceu na primavera seduz calmamente. Em pouco tempo aqui é possível estar conjugando o verbo “sãocarlar” sem se dar conta. Destino de quem bebe dessa água (a “água da Biquinha”, como se dizia) e, se consegue ir embora, um dia volta.


Eu bebi a famosa água, me tornei torcedor do Grêmio Esportivo São-carlense, fiquei amigo do prefeito Antonio Massei, frequentei o Baile do Jeans da Abasc, vi Odette dos Santos descer a Avenida no carnaval à frente da escola de samba do Flor de Maio, embarquei em ônibus que passavam às “horas e dez” ou “vinte pra hora”, conheci o Bar Pistelli, li a Coluna do Adu, visitei o mercado municipal quando ele “novo” e decorei as travessas da Vila Prado sabendo o nome certo da Avenida Doutor Teixeira de Barros: rua Larga.


Descobri logo que uma das qualidades de São Carlos é permitir que os são-carlenses, de nascimento, fé e teimosia, construam cada um o seu universo particular. É como um caderno novo à espera de nossas histórias. E todos têm uma receita própria para extrair, o néctar de viver em um lugar onde cabem muitos outros lugares.


As colinas que formam vales e os humores do clima colaboram. O mundo inteiro diz que o clima do planeta enlouqueceu, mas aqui isso é notícia velha. Mais precisamente de meados dos anos 60, quando se concebeu a “Festa do Clima”, para saudar o zigue-zague do tempo.


Amiga de uma boa polêmica, que de resto tem origem na sua própria história, São Carlos tem queda para o debate.  Acredite: em 1957, no centenário, os ânimos se exaltaram na imprensa quando dois grupos garantiam só existir um fundador da cidade. E é sabido que a honra foi igualmente de Antonio Carlos de Arruda Botelho, o Conde do Pinhal e de Jesuíno Soares de Arruda.


Bem antes dos sabe-tudo das redes sociais, não se chegava a nenhuma conclusão sem que antes se estabelecessem homéricas discussões, entre gestos largos e um sotaque interiorano meio puxado para o italiano, suprimindo o “s” dos plurais. Muitos dizem que alguma coisa precisa ser feita na cidade e, quando algo é feito, proclamam que poderia ter sido muito melhor. Sorte que tudo acaba em pizza. Ou em lanche. Como o “prensadão”, quase um patrimônio cultural e gastronômico da cidade.


Meio Peter Pan, meio irmã da gente, São Carlos há anos conserva indicadores sociais acima da média nacional sem deixar de ser uma cidade tipicamente brasileira. Tem índios, negros, nobres donatários e imigrantes europeus, árabes e orientais no seu DNA. E se expandiu um tanto desordenadamente. Espichou-se de forma mais acentuada daquele início dos anos 1970 até o final da década seguinte. Muitos bairros foram surgindo, um Plano Diretor só veio depois e, agora, se fala que é preciso alterá-lo. O Plano Diretor, como se sabe, é como um plano de voo para orientar a atuação do setor público e privado sobre os rumos do desenvolvimento de uma cidade.


Parafraseio o grafite: “Entende-la é começar a surpreender-se”.


A respeito do progresso local, o professor e historiador Ary Pinto das Neves – que além da educação transitou pela política, tendo sido presidente da Câmara - citava a importância da articulação entre o setor público e privado e a comunidade acadêmica para fazer valer o potencial aqui instalado.


Há 36 anos o mestre - falecido em 2004 - recomendava: “A conjugação desses esforços resultará em obter o crescimento contínuo e ordenado da área urbana, sem violentar a infraestrutura de saneamento, de modo que no início do século 21 São Carlos seja a cidade ideal para se viver”.


Já vivendo o tempo futuro mencionado, creio que suas palavras precisam reverberar hoje, quando abro a janela para olhar a cidade em mais um aniversário dela.


A janela é como um espelho que reflete o que somos. A cada novembro ficamos mais são-carlenses e um pouco narcisos a olhar detidamente nosso próprio rosto na imagem da cidade. Assimilamos um pouco a alma de Ronald Golias.


Ô Cride, fala pra mãe que São Carlos, aos 163 anos, está em forma e merece os parabéns, embora os que aqui vivem farão sempre o reparo de que algo lhe falta. Decerto. Mas o que nunca pode faltar, embrulhado em papel de presente, é o carinho de cada um dos seus habitantes.


A propósito, aqui vai - a título de curiosidade - uma pergunta: que presente você daria para São Carlos neste aniversário?


(*) O autor é cronista e assessor de comunicação em São Carlos  (MTb 32605) com atuação na Imprensa da cidade desde 1980. É autor do livro “Coluna do Adu – Sabe lá o que é isso?” (2016).


Esta coluna é uma peça de opinião e não necessariamente reflete a opinião do São Carlos Agora sobre o assunto.