“A dificuldade do PT para dialogar com a sociedade é nítida”

 




Ex-tesoureiro nacional do PT, Edinho Silva, reeleito prefeito, defende que partido inicie uma reorganização e reconstrua as suas bandeiras


Se pareceria milagre um ex-ministro de Dilma Rousseff e ex-tesoureiro nacional da campanha da petista de 2014 se eleger prefeito no fatídico ano de 2016, Edinho Silva repetiu a dose e se reelegeu em 2020 como prefeito de Araraquara, município do interior de São Paulo com quase 240 mil habitantes. Há anos ele prega que o PT faça uma revisão. Após a eleição de Jair Bolsonaro e diante das estatísticas eleitorais das disputas deste ano, Edinho sustenta que o partido precisa buscar um caminho de reorganização e reconstrução de bandeiras. “Se a gente errar no diagnóstico, erra no remédio.”


Também ex-presidente do PT de São Paulo, o prefeito concedeu uma entrevista ao Valor, em um hotel na capital, no dia em que havia se reunido com todos os prefeitos eleitos da sigla no Estado. Na última semana de campanha, o petista contraiu o coranavírus, mas foi um quadro assintomático.


Parte da crise do PT, diz o prefeito, ocorre pela desconexão do partido com a sociedade. Novos atores surgiram, fora do mundo formal do trabalho e dos sindicatos, e eles não se sentem representados por ninguém. O PT, diz, também não soube incorporar bandeiras do século 21, da sustentabilidade, diversidade sexual, bem-estar animal. Neste quesito, a nova esquerda se sai melhor. Se a eleição presidencial fosse hoje, Bolsonaro estaria no segundo turno, assegura.


Guilherme Boulos, do Psol, é uma liderança nacional hoje e emergiu a partir de um erro tático eleitoral do PT em São Paulo, ainda que o ex-candidato, afirma o prefeito, tenha inúmeros méritos. A questão, agora, é como o PT vai dialogar com Boulos, pontua Edinho, já que o ex-líder do MTST é protagonista para qualquer negociação da esquerda em 2022.


Fernando Haddad, afirma, errou ao não disputar na capital. E o PT precisa agir rápido para formar uma frente de esquerda e uma frente democrática, dialogando com PSDB, MDB e outros do centro, defende o prefeito. Sobre o governador João Doria, diz que ele foi republicano durante a pandemia e tomou medidas corretas, mas erra ao politizar a questão da vacina.


A seguir, os principais trechos:


Valor: Como foi clima político desta disputa de 2020? O antipetismo se expressou? De que forma?


Edinho Silva: A hostilidade ao PT diminuiu, mas não passou. Quando se estimula o ódio contra o PT, ele vem. Quando passei de 40% das intenções de votos, sabia que chegava ao teto. Na reta final, a agressividade contra minha campanha aumentou muito e o antipetismo foi estimulado à exaustão, inclusive com ilegalidades, pesquisas manipuladas. O candidato que demonstrou mais chance de me derrotar drenou o antipetismo. Foi o voto útil contra o PT.


Valor: O antipetismo é associado à corrupção nas disputas?


Silva: Sim, não tem nada que estimula mais o antipetismo do que a corrupção. Aqui em São Paulo, todos os prefeitos do PT dizem isso. É real e concreto. O PT precisa fazer uma avaliação muito honesta de 2020, sem achar mocinhos e bandidos. Como estamos numa pandemia, se fóssemos fazer uma metáfora, é: não podemos errar no diagnóstico, senão a gente erra o remédio. 


Valor: Essa campanha foi muito distinta da de 2016?


Silva: Em 2016 foi muito difícil para o PT, com um grau de dificuldade absurdo, para mim em especial pelo fato de eu estar saindo do governo Dilma, que havia sido impichado, e por ter sido coordenador financeiro da campanha dela no auge da Lava-Jato. Foi a pior eleição que eu enfrentei na vida. Notei o distanciamento, a frieza das pessoas e, em vez de falar, pedi que falassem: ali emergiu a questão do ataque que todos sofriam na família, no trabalho, por defenderem o PT. Eu disse que sabia que esperavam que o PT deveria ter tido outra postura em relação ao financiamento privado, mas era o modelo do Brasil. Isso desarmava a resistência. Eu dizia que se achavam que o PT errou, o partido também tinha acertos. Foi importante ter reconhecido que nós adotamos o mesmo modelo político dos demais partidos.


Valor: Mas o PT reconhece isso com clareza, oficialmente?


Silva: O PT tem dificuldade. Não estou dizendo que o PT errou. O PT usou o modelo existente, que era aquele. 2016 foi uma eleição em que ninguém esperava que eu ganhasse. Nem o PT.


Valor: Qual sua avaliação do resultado nacional? A direção do PT aponta êxitos. Mas em São Paulo a eleição foi um desastre para a sigla.


Silva: Nenhuma avaliação que não considere que o PT vive um quadro de extrema dificuldade será correta e honesta. A partir daí é possível fazer um caminho de reorganização partidária, de reconstrução e construção de bandeiras, e também de estratégia para neutralizar a dificuldade de diálogo que temos com a sociedade. É nítido que estamos tendo dificuldade imensa de diálogo com a sociedade. O PT retroagiu no Brasil inteiro e em São Paulo nós recuamos muito.


Valor: A direção nacional diz ter optado por lançar o maior número de candidaturas. Isso foi correto?


Silva: Quando você está numa dificuldade de reafirmação das bandeiras partidárias, não é errado lançar candidatos no maior número possível de cidades. Mas o resultado que veio dessa estratégia tem que ser avaliado. O balanço de 2020 precisa ser crítico, racional. É nítido, evidente e material que precisamos desta reorganização.


Valor: O senhor defende isso internamente desde o pós-2013. O PT conseguiu evoluir neste debate?


Silva: Não existe balanço consensual sobre o que foi 2013. Para mim, 2013 trazia os indícios da crise da democracia representativa que vem se aprofundando. Tanto que tivemos em 2018 a visão antissistema muito forte. O vitorioso encarnou isso. Em 2020 acho que a sociedade fez um pouco essa autocrítica, mas não demonstrou ainda a reconexão com a democracia representativa porque as abstenções são cada vez maiores. Há também a crise de interlocução. Os movimentos sociais tradicionais não conseguem representar uma parcela da sociedade. Em 2020, por exemplo, eu vi a emersão de setores sociais angustiados e fragilizados e sem representação. Exemplo: os entregadores de aplicativos. Isso é muito maior do que a gente pode dimensionar. E pegue os trabalhadores que se incorporaram ao setor de serviços para a sobrevivência. Essas “novas profissões” não têm interlocução com os movimentos sociais tradicionais. Não se sentem representados.


Valor: Nem tampouco as minorias, o movimento negro, a população de rua, LGBTIQ+, entre outros.


Silva: O PT, por incrível que pareça, perdeu muito espaço com a população LGBT. Os partidos mais novos da esquerda cresceram muito nesses setores. A esquerda, de forma geral, perdeu a bandeira do bem-estar animal. Essa bandeira tem que ser da esquerda, porque traz a questão da sustentabilidade. E nós não vimos a esquerda tratando disso. A direita se apropriou. E o meio ambiente: há uma gama imensa da juventude muito sensibilizada com as questões ambientais, e a esquerda não consegue dialogar com esses setores. A esquerda tem extrema dificuldade em dialogar com novas bandeiras: as novas profissões, esse novo mundo do trabalho, os temas emergentes do século 21, a diversidade sexual, o bem-estar animal, a sustentabilidade. E há uma bandeira que será importante, e precisa ser da esquerda: o cooperativismo. É algo muito potente desses setores excluídos do modelo tradicional de produção. Trabalhadores colocados à margem na pandemia não vão voltar ao processo produtivo tradicional. 2013 deu sinais de qual seria a pauta prioritária do século 21. Ficamos refratários e não conseguimos interpretar. O representante não pode ser o corpo estranho do representado. Por exemplo: eu divulgo meu WhatsApp. Claro que isso me demanda um trabalho absurdo, mas acabo tendo uma conexão direta com a sociedade e com os problemas.


Valor: Foi um equívoco o PT insistir na candidatura de Jilmar Tatto?


Silva: O Jilmar sabe que eu sempre pensei que a tática correta seria o Fernando Haddad ser candidato. O Fernando vinha de um recall de campanha presidencial, foi um prefeito não reeleito, mas construiu bandeiras muito importantes, e isso é inegável. A campanha de São Paulo tem visibilidade nacional. Respeito, mas não concordo com a decisão dele de não disputar. Se ele tivesse disputado, o cenário em São Paulo seria outro. O balanço de 2020 seria outro.


Valor: Novas lideranças da esquerda se fortaleceram em 2020. O PT perdeu projeção nacional?


Silva: A Manuela [D’Ávila], que já era realidade, se firmou muito mais. A Marília [Arraes], no Recife, e o Boulos aqui. Boulos é uma liderança com muitas virtudes e qualidades que fizeram com que ele tivesse esse resultado.


Valor: Ele ocupou o vácuo do PT?


Silva: Sim, é isso. Ele se construiu a partir de um erro tático eleitoral do PT. O que não tira nem os méritos e nem as qualidades do Boulos. O erro do PT fez com que nós consolidássemos uma grande liderança da esquerda brasileira. A pergunta que fica é: como é que o PT vai lidar com esse processo daqui pra frente? Boulos é hoje uma liderança com muita musculatura. Qual é a relação que o PT vai estabelecer com ele daqui pra frente? Essa pergunta precisa ser respondida.


Valor: E qual seria sua resposta?


Silva: Daqui pra frente o Boulos precisa ser um aliado importante, e tem que ser respeitado como tal. Ele tem todas as condições de ser protagonista.


Valor: Há quem argumente que ele terá que deixar o Psol para trilhar o projeto presidencial e o caminho pode ser o PT. Concorda?


Silva: Não. O PT, por seu tamanho hoje, pode liderar e dar importância e peso à construção de uma frente de esquerda. Por que isso não pode ser construído, considerando a importância do Boulos e o fortalecimento do Psol e a necessidade de a esquerda se reorganizar? É possível montarmos uma frente. E é necessário.


Valor: E quem estaria nesta frente? Ciro Gomes, do PDT, avalia que o eleitorado rejeitou os extremos, e com isso ele coloca o PT numa ponta e Bolsonaro na outra. Essa frente de esquerda seria feita sem PDT e PSB?


Silva: Tem que ter uma frente que considere todos os partidos. Ciro tem sido muito ácido. Talvez porque queria fazer um movimento de centro e se distanciar da esquerda. Mas deveríamos considerar todos os partidos que se reivindicam como de esquerda, ou de centro-esquerda, para esta frente.


Valor: E como administrar as vaidades de Ciro Gomes e do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva?


Silva: O Lula tem feito gestos importantes no sentido de pensar um projeto para o Brasil neste momento. Não sei quais serão as posições do Ciro. É hora de colocarmos os interesses da democracia, do Brasil e da população mais vulnerável acima de quaisquer outros interesses.


Valor: Jair Bolsonaro é um candidato forte para 2022?


Silva: Bolsonaro é forte porque o bolsonarismo é maior do que ele. Se a eleição fosse hoje, ele iria para o segundo turno. Bolsonaro conseguiu dar vazão e materialidade a um conservadorismo que sempre existiu no Brasil, mas muitas vezes se sentia constrangido. Ele legitimou esse conservadorismo. Se nós não entendermos isso, dificilmente vamos recolocar o Brasil no caminho de um país verdadeiramente democrático e inclusivo, que considere nossa desigualdade e diversidade. É necessária a organização de uma frente de esquerda e mais, de um campo democrático que vá além da esquerda. Não que isso vá desembocar numa aliança eleitoral. Mas que a gente possa ter algumas bandeiras em comum com os partidos de centro para que a gente dialogue neste momento histórico do Brasil. O PT tem que se abrir para esse diálogo. É importante que se dialogue com o PSDB, o MDB, com o Cidadania, com setores do DEM e do PP, do Republicanos, e assim por diante. Com os partidos que reivindicam essa essência democrática, principalmente o PSDB e o MDB. A gente tem que se abrir para esse diálogo, fundamental.


Valor: Há grupos do PT que pedem revisões internas. Mas a direção nacional parece muito refratária. Como quebrar resistências?


Silva: O PT tem que ter sensibilidade para entender esse momento histórico. É extremamente grave. Se errar no diagnóstico, erra no remédio, como eu disse. O momento não é simples de ser compreendido e nem é simples enfrentá-lo. Primeiro: o PT tem que se rejuvenescer. E não é questão etária. É sensibilidade para o que o Brasil vive no século 21, novas demandas, novos interlocutores. O velho pode ser inspiração e o novo pode carregar o velho. Um dos erros cometidos na história, por falta de compreensão, e maior desastre do século 20, foi o nazismo. Tem algo que precisa ser derrotado no Brasil. E esse algo é o autoritarismo, a negação da democracia, a negação de um país que seja inclusivo e respeite a diversidade racial, sexual e de etnia. Não podemos achar que a esquerda sozinha dá conta de recolocar o Brasil no caminho da democracia. Precisa conversar com os partidos de centro e ter uma agenda conjunta com eles.


Valor: Na pandemia, como prefeito, como foi seu diálogo com o governador João Doria (PSDB)?


Silva: Se eu tivesse a oportunidade de conversar com o governador diria que, em alguns momentos, houve um certo exagero na politização. Mas até entendo a conjuntura. No geral, tenho plena concordância com a conduta dele enquanto governante. A relação foi a melhor possível. Ele sempre tratou Araraquara, mesmo sendo governada pelo PT, de forma muito republicana. Repito que, se pudesse, gostaria de aconselhá-lo a não entrar nas armadilhas do governo federal.


Valor: E como foi e está sendo a pandemia no município?


Silva: Araraquara teve reconhecimento internacional. O Libération mandou uma equipe lá porque chamou a atenção que uma cidade do interior de SP tivesse desenvolvido medidas que levaram a uma letalidade tão baixa, que é 1,1 hoje.


Valor: O que foi feito para isso?


Silva: Não medimos esforços para fazer exames. 100% da população que procurou a rede fez exame. E fizemos busca ativa. Todo teste rápido que fazíamos, tinha busca ativa. Adotamos um protocolo, fazíamos internação precoce, porque montamos um hospital de campanha. Tenho certeza de que as medidas preventivas foram as responsáveis por essa baixa letalidade.


Valor: Os prefeitos enfrentarão situação fiscal sombria em 2021. Quais as perspectivas econômicas?


Silva: Estamos vivendo uma situação discrepante. O governo federal liberou recursos via verba covid-19 para cidades pequenas proporcionalmente absurdos, e para cidades médias e grandes recursos muito aquém por número de habitantes. Há muitos pequenos municípios com superávit e os grandes com déficit. Foram emendas por indicação parlamentar. É parecido com o que se viveu na ditadura, recursos para os grotões. A concepção da década de 70. Cria uma base social nas cidades menores. Raros serão os municípios que não vão carregar déficit em 2021. É o desmanche total do pacto federativo. Se não for feita uma reforma, os municípios terão muitas dificuldades. Há uma gama enorme de serviços municipalizados sem recursos equivalentes para a prestação. A segurança pública, por exemplo, praticamente foi incorporada pelos municípios, com as guardas municipais. É fácil estabelecer teto de gastos na União e no Estado. Quando alguém bate na minha porta na busca de cirurgia eletiva, vou dizer que o teto está congelado e vou deixar ela morrer? O Brasil é esquizofrênico. A União e o Estado têm medidas de austeridade, só que todo o custeio fica para o município.


Valor: Em que pé estão as ações às quais responde na Lava-Jato e como avalia a operação?


Silva: Nunca fui condenado a nada. Minha conduta como coordenador financeiro da campanha da Dilma foi sempre agir dentro da legalidade. Ninguém vai achar nenhuma ilegalidade que eu tenha cometido. Algumas ações já foram arquivadas, há inquéritos abertos. Houve muita contaminação política na Lava-Jato. Muitas das delações foram feitas para que os delatores ficassem livres. Boa parte das denúncias não têm materialidade. O tempo vai decantar o que é verdade e o que é mentira.


Valor: Lula será candidato em 2022? Ele representaria o novo?


Silva: Espero que sim. Se querem derrotar o Lula, derrotem na urna. Lula é muito aberto a novas ideias. Mesmo tendo mais de 70 anos, ele muitas vezes no diálogo parece um jovem no início de militância. Não acho que Lula candidato teria um discurso antigo, com bandeiras antigas. Penso que ele seria um candidato inovador. Se ele tiver condições legais, tenho certeza de que ele disputará.



Fonte:Por Malu Delgado — De São Paulo