Comentário de governador sobre ‘bandido levar bala’ é fala política, avaliam especialistas

 




“Bandidos escondidos atrás de capacetes, com mochilas de falso entregador, terão que mudar de profissão ou estado porque a polícia vai atrás deles e prendê-los. Bandido que levantar arma para polícia vai levar bala.”

Essa fala do governador Rodrigo Garcia (PSDB), durante anúncio do pacote de medidas contra os assaltos realizados por falsos entregadores, em alta no estado de São Paulo, foi recebida como bravata política por especialistas em segurança pública ouvidos pelo R7.

Premissa básica do trabalho policial, o uso da força é permitido, por lei, para a proteção da própria vida do policial ou a de potenciais vítimas.

Para Rafael Alcadipani, professor da FGV (Fundação Getulio Vargas) e especialista em segurança pública, o comentário de Garcia foi uma fala política acerca de uma situação comum/natural do trabalho das forças de segurança.

“Se alguém fizer menção de atacar um policial ou outra pessoa, a polícia terá que neutralizar essa ameaça. É da natureza do trabalho policial. A questão é querer ter um ganho político de uma coisa que é do dia a dia do trabalho da polícia. Precisamos de uma polícia profissional, séria e que vá neutralizar ameaças quando necessário”, afirma o professor.

Ao destacar que a legislação permite a ação descrita pelo governador, Felippe Angeli, gerente de advocacia do Instituto Sou da Paz, observa que em ano eleitoral são comuns “esses arroubos populistas, que dialogam com a população”.

O comentário, segundo ele, é marketing político. Pode, porém, oferecer um resultado nocivo à atuação das polícias. Um ator político em busca de reeleição, prossegue Angeli, deve ter responsabilidade com “essas falas mais truculentas”.

“Vindas do governador, que é o comandante das tropas, o chefe da Polícia Militar, as falas têm um efeito de uma autorização velada a uma atuação mais violenta por parte da polícia, têm um impacto no policial que é mais violento, aquele que não atua em conformidade com os padrões operacionais da polícia”, considera o especialista.

Pacote de medidas de segurança

Em resposta à estratégia de roubos por falsos entregadores, mais comuns nas últimas semanas, e à morte de Renan Loureiro, jovem de 20 anos que reagiu a um assalto, o governo paulista anunciou um pacote de medidas de segurança, nesta quarta-feira (4), chamado de Operação Sufoco.

Para enfrentar crimes contra o patrimônio, golpes do Pix, furtos e roubos com falsos entregadores, o conjunto de ações na capital paulista, região metropolitana e cidades do interior envolve dobrar o número de policiais nas ruas, blitze no trânsito e integração de dados de segurança com as empresas de aplicativo.

Para Rafael Alcadipani, o pacote é necessário: “Mobilizar o efetivo para restabelecer a sensação de segurança, principalmente depois da morte daquele jovem, é importante”.

Ao justificar as medidas, Rodrigo Garcia disse que “é isso que a sociedade está esperando, uma polícia ativa”.

A declaração é similar à do novo comandante da Polícia Militar, o coronel Ronaldo Miguel Vieira, que, no dia anterior, em sua posse no cargo, citou mais de uma vez a percepção de segurança no estado. “A gente tem de mostrar para a população que a Polícia Militar está presente”, disse.

Vindas do governador, que é o comandante das tropas, o chefe da Polícia Militar, as falas têm um efeito de uma autorização velada a uma atuação mais violenta por parte da polícia

FELIPPE ANGELI

Felippe Angeli avalia que, embora seja importante estabelecer a sensação de segurança entre a população, “o trabalho da polícia é um trabalho técnico, que não pode ser organizado a partir de clamores populares ou lugares-comuns daquilo que parece o ideal”.

Para ele, o conjunto de ações é uma medida compreensível, sobretudo em um ano eleitoral, uma vez que o crime de roubo gera muita insegurança, mobilização e medo na população.

“É natural que haja uma atuação política em relação a esse tema”, comenta o gerente do Sou da Paz, que vê como positiva a conversa entre o governo e as empresas de aplicativo: “Tem que haver a junção da sociedade civil, empresas, governo, para dar a melhor solução [a esses crimes].”

Bodycams

Letalidade policial caiu desde a implementação das câmeras corporais

Letalidade policial caiu desde a implementação das câmeras corporais

DIVULGAÇÃO/GOVERNO DO ESTADO DE SÃO PAULO

Durante a posse no comando da PM, Ronaldo Miguel Vieira se posicionou de forma favorável ao uso das câmeras corporais no uniforme dos policiais. Felippe Angeli destaca que os equipamentos podem ajudar na redução dos índices de violência, mas não devem ser vistos como soluções exclusivas.

“São Paulo teve avanços muito importantes na redução da letalidade policial e na redução da morte de policiais. O projeto de câmeras, embora não seja uma panaceia universal e não resolva, sozinho, os problemas da segurança pública, é muito importante”, considera.

O gerente do Instituto Sou da Paz lamenta, porém, que as bodycams tenham sido alvo de críticas de pré-candidatos ao governo do estado, que pretendem retirá-las de uso.

“Isso é muito deletério para as forças policiais, porque diminui o controle pelos comandos dessas forças e do policial que está na rua. O fato é um só: a letalidade policial, que era altíssima, despencou. O resultado é importante porque quer dizer que mais gente está viva. Não se trata de defender bandidos, mas de cumprir a lei”, pondera Angeli, que completa:

“Se tem um estado e uma polícia que não cumprem a lei, aí provavelmente estamos no caminho certo para a tragédia”.

Se alguém fizer menção de atacar um policial ou outra pessoa, a polícia tem que neutralizar essa ameaça. É da natureza do trabalho policial. A questão é querer ter um ganho político de uma coisa que é do dia a dia do trabalho da polícia

RAFAEL ALCADIPANI, ESPECIALISTA EM SEGURANÇA PÚBLICA

De acordo com um levantamento da Polícia Militar, os batalhões que adotaram o sistema de câmeras obtiveram uma redução de 87% nas ocorrências de confronto, além do aumento da produtividade.

Segundo dados da corporação, a letalidade policial passou por consecutivas quedas –  até dezembro passado, de 35% em 18 meses – desde que atingiu o primeiro semestre mais letal da série histórica.

Os dados refletem uma redução muito importante em um dos maiores problemas da segurança pública paulista, diz Felippe Angeli. Porém, pondera ele, em um ano eleitoral, há de se ter cuidado com discursos contra medidas como as bodycams:

“Os crimes de roubo são os que mais têm efeito para gerar medo e pânico na população. Óbvio que o ator político vai dialogar com isso. Mas não podemos balizar nosso discurso político com o que tem de pior nele, especialmente na segurança pública, que é o culto às armas, uma polícia miliciana e não técnica”.

A reportagem solicitou ao Governo do Estado de São Paulo uma posição sobre as críticas às falas do governador, mas até o fechamento deste texto não teve retorno.

Fonte:R7