O caso da menina, de 11 anos, induzida a desistir da realização de um aborto após ter sido vítima de um estupro em Santa Catarina gera indignação pelos áudios que vieram a público com falas da juíza Joana Ribeiro Zimmer em que ela tenta convencer a criança a manter a gestação e, sobretudo, pela série de violências institucionais impostas à menina e sua à mãe.
A primeira e mais evidente violação de direitos, segundo especialistas ouvidas pelo R7, é o estupro. Na sequência, violações como a ausência de intervenção e apoio do Conselho Tutelar da região, o pedido de autorização judicial por parte do hospital, a necessidade de intermediação do sistema de justiça, o isolamento em um abrigo e, por fim, a revitimização expõem a criança a diversas ilegalidades que agravam o trauma e a dor da vítima.
“Esse caso expõe problemas no sistema de saúde e de justiça”, diz a advogada Isabela Del Monde, sócia da Gema Consultoria em Equidade. “Foi o sequestro de uma adolescente impedida de fazer um aborto legal pelo sistema de justiça brasileiro.”
De acordo com a Ouvidoria Nacional de Direitos Humanos, órgão vinculado ao Ministério da Mulher, da Família e dos Direitos Humanos, houve um total de 7.447 vítimas de estupro no Brasil somente nos cinco primeiros meses deste ano. Dessas, 5.881 são crianças ou adolescentes, o que corresponde a quase 79% das denúncias. A garota de 11 anos de Santa Catarina corresponde ao perfil da maioria das vítimas de violência sexual no país. “Os direitos dessa jovem começam a ser violados desde o momento do estupro”, diz a advogada.
Depois, as violações prosseguem quando a mãe busca o Hospital Universitário da Universidade Federal de Santa Catarina e tem o procedimento negado sob o argumento de que são realizados abortos permitidos em lei até a 20ª semana de gestão. Após esse período, o hospital exige uma autorização judicial.
O Código Penal, porém, permite a interrupção da gravidez em caso de estupro sem limitação de período. “A realização de um aborto entre a 20ª e a 24ª é exceção, normalmente as mulheres querem fazer o procedimento o mais rápido possível”, explica Del Monde.
No caso das meninas dessa faixa etária, é comum que que haja uma demora para perceber a gravidez, tanto por parte das vítimas quanto de seus familiares. “Na prática, cada hospital faz da maneira que quer. Cria-se uma cultura para dificultar o aborto legal”, diz Del Monde. A advogada ressalta ainda que, caso a unidade de saúde não tenha o atendimento especializado, pode encaminhar a vítima a uma unidade mais apropriada.
Outro fator importante no caso da garota de 11 anos é que os laudos médicos atestam que ela corre risco de vida a cada semana de gravidez. “Pessoas de até 12 anos são totalmente incapazes, elas não têm capacidade psíquica, emocional ou financeira de escolher ter um filho”, afirma a advogada. “Por isso, o caso é de uma violência sem tamanho. A juíza poderia ter dito que não se trata de uma competência do Judiciário e autorizado o hospital a fazer o aborto.”
Ao contrário disso, a juíza, que foi afastada do caso, faz uma série de questionamentos que induzem a menina a manter a gestação e ainda se refere ao autor do estupro como “pai” da criança. “A linguagem é utilizada como um dispositivo de controle para influenciar a menina.”
Após a revitimização em frente à juíza, a promotora do Ministério Público de Santa Catarina Mirela Dutra Alberton ajuizou uma ação cautelar com pedido de acolhimento institucional da menina em um abrigo com o suposto objetivo de evitar que a garota fosse vítima de novos abusos. “Quem deve ser impedido de se aproximar da menina é o agressor. Nenhuma medida protetiva pode ser baseada em prejuízos à vítima, não é ela quem deve ser afastada de sua rede de carinho e apoio.”
Segundo a advogada, a estrutura do sistema de justiça brasileiro está montada de forma que incoerências sejam permitidas. Não raro, diz Del Monde, mulheres obtêm medidas protetivas em varas penais, mas nas varas da família são informadas de que os filhos serão submetidos a guarda compartilhada. O caso da menina de Santa Catarina tramita em segredo de Justiça para garantir a devida proteção integral à criança. Entretanto, segundo a advogado, isso impede o controle e a pressão social.
A falta de informação sobre direitos faz com que muitas mulheres e meninas tenham casos de violência sexual tratados na esfera da Justiça sem necessidade. Nessa ocorrência em Santa Catarina, especialistas acreditam que o hospital universitário poderia ter indicado uma unidade de referência. Além disso, o Conselho Tutelar do bairro em que a menina vive, na cidade catarinense de Tijucas, também poderia ter atuado. “A mãe fez tudo o que poderia ter feito para evitar a gravidez fruto de um estupro. Ela acreditou que deveria ter procurado a Justiça porque recebeu uma orientação equivocada”, diz a advogada.
O TJ-SC (Tribunal de Justiça de Santa Catarina) vai investigar a atuação da juíza. Contudo, segundo Del Monde, a possibilidade de ela ser afastada ou exonerada é mínima. Nesta terça-feira (21), o TJ informou que ela foi promovida no dia 15, cinco dias antes de o caso ganhar repercussão nacional. Ela sairá da comarca de Tijucas para a de Brusque.
“Diante da repercussão do caso, a menina deve conseguir realizar o aborto”, afirma Isabela Del Monde. “Entretanto, o caso expõe a ausência da regulamentação e expansão sobre o procedimento no Brasil.”
A socióloga e promotora legal popular Dulce Xavier atua em São Paulo, no ABC paulista, na orientação de mulheres sobre quais os serviços existentes para atender vítimas de violência sexual. “A violência sexual tem crescido bastante e é sempre um tema delicado para o atendimento, há uma resistência cultural muito forte quando se fala disso”, diz.
Segundo ela, os casos aumentaram muito durante a pandemia, período de manter confinamento e isolamento social. “A maior parte da população não tem conhecimento de que não é necessária uma autorização judicial para fazer um aborto.” Para ela, os hospitais deveriam estar mais bem preparados para o atendimento às mulheres.
Os serviços de atendimento às vítimas variam, segundo Dulce, de acordo com os municípios. Entretanto, o julgamento moral que recai sobre essas meninas e mulheres atrapalha a continuidade dos serviços. “Essa juíza não está preocupada com a menina, que precisa do cuidado. Ela tratou a criança como uma mulher adulta e como alguém que não está correndo risco de vida”, afirma a promotora.
Mulheres e crianças vítimas de violência sexual podem ser atendidas em prontos-socorros. Nas unidades, é coletado material para exames e elas recebem kits de emergência. “A grande dúvida dessas mulheres é não saber onde procurar informações”, diz Dulce. “É importante fazer a coleta do material quanto antes. À delegacia, elas podem ir depois.”
Além disso, a socióloga lembra que crianças que sofrem violência sexual demoram a relatar o abuso. Nesse sentido, a promotora reforça a importância do trabalho conjunto entre profissionais de diferentes áreas. “Nas salas de sala, orientamos educadores a perceber mudanças de comportamento das crianças.”
Após o atendimento emergencial, a denúncia pode ser feita ao Conselho Tutelar, para proteger a criança, à Defensoria Pública ou às autoridades policiais. “O importante é que o adulto que descobrir o abuso faça a denúncia o mais rápido possível. O espaço doméstico precisa ser observado com cuidado.” No caso da menina de Santa Catarina, Dulce afirma que as falas da juíza “praticamente manipulam a vítima”.
“Não existe consideração com a dor, e a gravidez é tratada como uma gestação comum, como se a menina não tivesse sofrido uma violência. A Justiça, que deveria defender o direito da criança e a condição psicológica e física dela, não o faz, apenas revitimiza e trata a menina como participante do crime do estupro, o que é um problema recorrente”, diz a promotora.
Fonte:R7